Demissão de Ricardo Kotscho sugere que UOL entende de negócio e pouco de jornalismo
06 agosto 2023 às 00h01
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As reportagens e artigos de um jornalista gabaritado não envelhecem. Permanecem de rara vivacidade. O repórter pode ser velho — em termos de idade —, mas o resultado de seu trabalho, devido aos anos de experiência, leituras e convivência com as ruas e as pessoas, tende sempre a melhorar, a ficar mais preciso. Refinado, o texto ganha em contenção, apuro e, sim, beleza.
Os melhores textos da revista “Veja”, até pouco tempo, eram de Roberto Pompeu de Toledo. Suas reportagens, assim como artigos e resenhas, eram deliciosas. Trafegavam da precisão jornalística para o estilo próximo do literário, semelhante ao trabalho do novo jornalismo americano — de gente como Truman Capote, Susan Orlean (que aprecio, escreveu um livro sobre orquídeas que, para além das flores, é um belo relato jornalístico sobre a vida das pessoas nos Estados Unidos), Janet Malcolm, Joseph Mitchell (“O Segredo de Joe Gould” é muito bom), Joan Didion (dona de um texto primoroso — entre o interpretativo dos fatos e a empatia pelo narrado), Gay Talese (adoro o livro “Vida de Escritor”; na verdade, são histórias extraordinárias de um repórter que se tornou escritor) e David Remnick.
A “Veja” não tem mais o charme de Roberto Pompeu de Toledo, que agora se dedica a escrever livros — dois deles, sobre São Paulo, de excelente qualidade. Mas é preciso ressaltar o vigor do texto de dois jornalistas que permanecem na revista — Fábio Altman, redator-chefe, e José Casado, colunista. Não sei se o segundo responde tão-somente pela coluna, por sinal bem-feita, com assuntos candentes. Mas José Casado é, acima de tudo, um grande repórter. Mantê-lo apenas como colunista, se for este o caso, é empobrecer o seu imenso talento.
Dos jornalistas que morreram, cito três (e, claro, há vários outros; eu era leitor de Paulo Francis apreciava até suas idiossincrasias e chutes) — Marcos Faerman (1943-1995 — viveu 55 anos), Nirlando Beirão, que morreu, aos 71 anos, em 2020, e Washington Novaes, que morreu, em 2020, aos 86 anos.
Marcos Faerman era um repórter notável, que sabia tirar o melhor daquilo que não parecia tão bom. Para ele, valia a tese de que não existe tema ruim — o que existe é repórter que não sabe transformar aquilo que parece trivial em assunto relevante para a sociedade, para o leitor. Ele sabia que um assunto só se torna interessante, cativando a atenção do leitor, se o repórter se envolve com os fatos, tornando-os não ficcionais, e sim imaginativos, próximos da literatura. O jornalismo factual esfria a vida, aquilo que a vida tem de quente. O jornalista verdadeiro traz o cheiro da vida para suas reportagens.
O texto de Nirlando Beirão parecia gritar de alegria e prazer. Havia uma delicadeza, um trato raro na linguagem. As palavras das reportagens e artigos do jornalista que escreveu em jornais e revistas, como a “CartaCapital”, pareciam brincar entre si, para divertir o eleitor, informando-o e entretendo-o.
Depois de brilhar em jornais do Rio de Janeiro (inclusive na TV Globo) e em São Paulo, Washington Novaes — assim como os gigantes Reynaldo Jardim e Aloysio Biondi — mudou-se, de mala e cuia, para Goiás, de onde não mais saiu (foi editor do “Diário da Manhã”, nos tempos áureos do jornal). Ele sabia tudo de jornalismo, e sabia ensinar os novos repórteres, com infinita paciência e voz baixa e generosa. Escrevia artigos e reportagens, descobria novos personagens, editava, produzia documentários. Sabia quase tudo sobre meio ambiente.
Aos 81 anos, Sérgio Augusto permanece brilhando nas páginas do “Estadão”. Fala de filmes, livros, pessoas etc. Seus textos são deliciosos, raros. Gostaria de vê-lo escrevendo críticas literárias e de cinema mais longas, como em tempos idos.
Ruy Castro, de 75 anos, escreve um artigo curto na “Folha de S. Paulo” e, eventualmente, um texto maior. Quem não gostaria de ler análises de sua autoria — assim como de João Marcos Coelho (de quem leio tudo, sobretudo sobre música), João Máximo e Júlio Maria (autor de magníficas biografias de Elis Regina e Ney Matogrosso) — sobre jazz, cinema e livros? Ele escreveu biografias do balacobaco de Nelson Rodrigues, Carmen Miranda e Garrincha. E, claro, uma bíblia sobre a Bossa Nova, a música brasileira que, tendo bebido no jazz, contribuiu para renová-lo. Trata-se de “Chega de Saudade — A História e as Histórias de Bossa Nova” (Companhia das Letras, 536 páginas) — que deve ser lido em dueto com os livros do gigante Zuza Homem de Mello, autor de um livro ótimo, “Amoroso — Uma Biografia de João Gilberto” (Companhia das Letras, 326 páginas).
Há pouco tempo, num site instalado no UOL, um jornalista da estridência mencionou supostos “medalhões” da imprensa e citou Dora Kramer, que, aos 68 anos, é uma das melhores analistas da política brasileira. Como não é adepta dos consensos da mídia — que avalia que, para criticar Bolsonaro (para que não volte), é preciso defender Lula da Silva — parece ter ganhado desafetos. Permanece como uma das observadoras mais atentas do cenário político do país.
A demissão de Ricardo Kotscho
O escrito acima tem a ver com a demissão do repórter Ricardo Kotscho do portal UOL, aos 75 anos.
Ricardo Kotscho está gagá? Não. Ricardo Kotscho não aprecia trabalhar? Adora. Ricardo Kotscho não sabe mais escrever? Pelo contrário, escreve e apura muito bem. Gosta de gente, sabe entrevistar do rico, pelo qual não tem muito interesse, ao pobre.
Penso em Ricardo Kotscho como um vinho antigo e de alta qualidade. Sua reportagem está refinada, contida e cheia de vida. Seu jornalismo é jovial, tem fôlego, vida. Há uma perspicácia rara em seus textos, um agudo senso de observação.
Um repórter comum, desses que apreciam copiar releases e assinar o resultado — sem ficar corado —, vai cobrir um assassinato passional num bairro de pobres, volta para a redação — ou manda o texto de lá mesmo, por intermédio do celular —, contando o que se convencionou chamar de fatos, tipo: Zé Karenin Soares matou Anna Fillíppovna da Silva com sete facadas, fugiu e foi atropelado por um trem. Os fatos estão aí — os nomes, o assassinato, a fuga e o atropelamento.
Ricardo Kotscho circularia pelo bairro, conversaria com parentes, amigos, vizinhos e certamente daria ao leitor um painel mais amplo da questão. O jornalismo precisa menos de “choque de realidade” — com sua brutalidade desmedida (que os textos agudizam) — e mais do drama de Shakespeare para compreender os dilemas do humano. A imaginação deve ser usada não para edulcorar ou exacerbar os fatos, e sim para torná-los mais compreensíveis. Os gregos contavam as piores tragédias, antes do nascimento de Jesus Cristo, com o registro de matizes, ambiguidades e nuances que contribuíram para iluminar o drama da vida dos indivíduos e nos são úteis até hoje, como arte e explicitação da complexidade da vida.
Ah, Ricardo Kotscho está velho. Mas a idade o atrapalha no trabalho? Tudo indica que não. Ele escrevia e até participava de reuniões de pauta, por certo orientando os mais jovens, dando dicas valiosas — dessas que, embora a meninada não perceba, são impagáveis.
É um direito da empresa — o portal UOL, da família Frias de Oliveira — demitir. Mas é preciso muita coragem, e falta de entendimento do que é bom jornalismo, para demitir profissionais como Ricardo Kotscho e Janio de Freitas (Marcelo Coelho saiu da “Folha de S. Paulo” em solidariedade a um profissional que trabalhou décadas no jornal) — deuses do bom jornalismo. Há algum tempo, critiquei um livro de Ricardo Kotscho, até duramente, mas nunca o desmereci como repórter.