Delação premiada é o “alcaguete” bancado pelo Estado
20 abril 2015 às 22h03
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É preciso respeitar os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório. É importante porque aparentemente a defesa no Brasil se tornou um meio dispensável e muitas vezes ignorado
Heitor Crispim
A delação, ou chamamento do corréu, consiste na afirmativa feita por um acusado, ao ser interrogado em juízo ou ouvido na polícia, pela qual, além de confessar a autoria de um fato criminoso, igualmente atribui a um terceiro a participação no crime como seu comparsa. A chamada “delação premiada”, ou colaboração premiada, é quando o Estado (via Ministério Público ou polícia anuindo com o delator em um “Acordo de Colaboração Processual” homologado pelo juiz natural) oferece vantagens penais ao dedo-duro. É claramente uma espécie de direito negocial, ou seja, de Plea Bargaining — que é não é muito comum no Direito brasileiro. A novíssima lei das Organizações Criminosas (número 12.850/2013) é a que mais detalhadamente versa sobre o tema, embora contenha falhas e lacunas inaceitáveis.
Discussões sobre o tema costumam se dar de forma polarizada, com posições veementemente contra ou a favor. Para alguns, o instituto é abjeto, pois o Estado não pode institucionalizar a traição. Outros argumentam que não há valor moral em manter o silêncio entre integrantes de uma organização criminosa e que o delator age eticamente ao confessar seus pecados, ajudando no combate ao delito que antes cometia.
Em vez de dar voltas teóricas para mostrar como é inadequada a delação, basta exemplificar: ela foi instrumento disseminado de política criminal na União Soviética stalinista. O menino Pavlik Morozov foi premiado pelo Estado totalitário por promover a delação de seu pai. Ganhou do regime uma estátua em troca de sua ajuda. Seu pai morreu num gulag. É desnecessário descrever aqui o grau de desconstrução atingido pela sociedade soviética após anos de vigência de tal modelo totalitário de justiça criminal. O maior delator da história ocidental, por exemplo, recebeu 30 moedas de prata em troca do seu depoimento. Seu nome era Judas, e a história do delatado terminou em crucificação, acusado de subversão.
Este articulista, portanto, vê com muito maus olhos a traição por questões inerentes a moral e a ética. E, também, por questão ideológica, pois, como liberal, não aceito que a ineficiência do Estado e da sua política criminal seja motivo para solapar as garantias processuais instituindo prêmios aos coautores ou partícipes de crimes. Lembrem-se que o que vale para José Dirceu vale para o gari da esquina e para você que agora me lê. Isso não é proselitismo porque o sistema criminal trata do mais importante valor de uma sociedade democrática que é a liberdade e os mandamentos que o Estado deve coibir devem ser gerais e abstratos. Se forem particularizados é um claro anúncio de ditadura. Embora clara resistência contra o instituto é inegável sua existência e aplicabilidade no ordenamento jurídico da terrae brasilis. Para tanto, nosso objetivo é levantar pontos que devem ser complementados na atual legislação para evitar a disseminação de arbitrariedades, o impedimento do contraditório e da ampla defesa, a vulgarização das prisões preventivas e quanto ao aspecto probatório.
Primeiro, o projeto do novo Código de Processo Penal que tramita no Senado deveria entre outras medidas atualizar o artigo 313 — que versa sobre prisões provisórias. Deve ser estabelecido um prazo máximo legal máximo para a provisória. Em dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), quatro entre dez encarcerados no Brasil estão em situação de prisão provisória. Isso equivale a 40% da população carcerária do Brasil, de aproximadamente 500 mil presos. No Piauí, o percentual chega a 78%. Enquanto em São Paulo é de 24%.
Segundo, aqueles que se utilizam do conteúdo das delações devem ter em mente que não basta apenas a delação isolada porque isso não é suficiente para fundamentar uma sentença condenatória. Na jurisprudência: STF: HC n* 94.034/SP, HC n* 84.845/SP, HC n*71.803/RS, RExt. n*213.937/PA, HC n*75.226/MS. STJ: RHC n* 11.240/PR. Por isso, a delação deve indicar meios do iter criminis (caminho do crime), apresentar documentos, recuperação total ou parcial do proveito criminoso e recuperação de eventual vítima do delito praticado com sua integridade física preservada.
Terceiro, instaurada a ação penal decorrente do processo investigatório que se fundou na delação premiada e em outros conteúdos probatórios deve se tornar público para a defesa dos coautores citados respeitando a produção em contraditório ressalvados pelo artigo 8.2,f, da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). E, principalmente, respeitando os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Isso é muito importante porque aparentemente a defesa no Brasil se tornou um meio dispensável e muitas vezes ignorado. E sabemos que para concluir o sentido de Justiça deve-se haver um confronto entre acusação e a defesa respeitando os mandamentos processuais e legais e apurado os fatos o juiz imparcial sentenciará. Então, é de vital importância que exista na lei um prazo bem definido para que defesas não possam atuar como mero formalismo.
Quarto, o acordo é feito entre o delator e o Ministério Público e homologado o “Termo de deliberação em procedimento de delação premiada” por um juiz. Isso é um contrassenso porque o juiz pode entender que não houve nenhuma contribuição e sentenciar desfavoravelmente contra o delator. Chega a ser tragicômico, mas isso pode acontecer. Contudo, o que é mais relevante nesses acordos é que o criminoso renuncia seu direito ao silêncio e ao falso testemunho. Portanto, como é notório na rumorosa Operação Lava Jato a renúncia à alegação de nulidade, habeas corpus e questionamentos técnicos é absurdamente ilegal. Basta procurar na internet os termos das delações de Alberto Youssef e Paulo Roberto Costa.
Por fim, entendo que essa ética utilitarista é um perigo se usada nas mãos erradas, pois certamente produzirá anomalias no sistema. O nome da delação premiada no sistema probatório é “prova anômala” e isso já diz muito sobre seu caráter técnico. Imagine então usada nas mãos do preposto do “bem” na Terra? É apenas uma pergunta retórica… Afinal é a instauração do Sistema Penal Maquiavélico que valerá para todos.
Heitor Crispim é estudante da Faculdade de Direito da Fundação Armando Alvares Penteado.
[A pintura acima, sobre o beijo de Judas, é de Caravaggio]