“Se os líderes do Hamas forem punidos, há chances de aprendermos a coexistir com os palestinos. A brutalidade do que aconteceu coloca em dúvida a capacidade de Israel de conviver com os palestinos.” — David Grossman

O israelense David Grossman, de 69 anos, é autor de livros extraordinários, como “Ver: Amar” (530 páginas, tradução de Nancy Rosenchan), “Alguém Para Correr Comigo” (437 páginas, tradução de George Schlesinger), “Desvario (322 páginas, tradução de George Schlesinger), “Fora do Tempo” (171 páginas, tradução de Paulo Geiger), “Garoto Zigue-Zague” (424 páginas, tradução de George Schlesinger), “A Mulher Foge” (656 páginas, tradução de George Schlesinger), “Mel de Leão” (136 páginas, tradução de Tova Sender), “O Livro da Gramática Interior” (tradução de Paulo Geiger, 536 páginas), “Duelo” (136 páginas, tradução de George Schlesinger), “O Inferno dos Outros” (208 páginas, tradução de Paulo Geiger) e “A Vida Brinca Muito Comigo” (296 páginas, tradução de Paulo Geiger).

Todos os livros listados acima foram publicados pela Editora Companhia das Letras. O melhor que se faz por um escritor é publicar toda a sua obra — o que permitirá aos leitores e aos críticos uma leitura mais ampla e detida de sua produção literária. David Grossman deu sorte no Brasil: conseguiu uma boa editora e tradutores competentes — que o traduzem do hebraico. Nancy Rosenchan, George Schlesinger, Paulo Geiger e Tova Sender são pontes seguras entre a prosa do autor israelense e os leitores brasileiros.

David Grossman formava um quarteto com Amós Oz, A. B. Yehoshua e Meir Shalev e é o único sobrevivente. Poderá ganhar o Nobel de Literatura algum dia? Talvez sim (ele merece, pois é um prosador brilhante). A posição de Israel no Oriente Médio, em conflito com árabes, notadamente com palestinos, é um impedimento? Pode ser. A barreira pode ser pelo fato de ser israelense, e não necessariamente por ser judeu. Amós Oz, crítico dos excessos de Israel, merecia o Nobel, mas não lhe deram. Possivelmente, houve algum boicote. O mesmo se deu com o excelente escritor A. B. Yehoshua.

Dado o conflito entre Israel e o Hamas, em desenvolvimento — com Israel atacando duramente a Faixa de Gaza, em resposta ao ataque do grupo terrorista a israelenses, dentro do território de Israel —, recomendo a leitura de “Fora do Tempo”. O sargento Uri Grossman foi morto pelo Hezbollah (organização terrorista financiada pelo Irã), em agosto de 2006, no Líbano. Seu pai, David Grossman, ficou possesso, com ódio. Entretanto, no lugar de se vingar, escreveu um romance, “Fora do Tempo”, que pode ser lido numa sentada. O livro foi a maneira de se vingar? Pelo contrário, trata-se de uma resposta artística de um escritor que propõe a paz e a conciliação entre povos que, mesmo em conflito, parecem condenados a viver lado a lado, ainda que aos trancos e barrancos.

Uri Grossman e David Grossman: o sargento foi morto pelo Hezbollah | Foto: Reprodução

No sábado, 21, David Grossman, um indivíduo de esquerda — o que não significa que seja comunista (porque no Brasil a direita trata, equívoca e maliciosamente, todo mundo que é de esquerda como se fosse comunista) —, concedeu ótima entrevista ao repórter e crítico literário Ruan de Sousa Gabriel, de “O Globo”.

Sousa Gabriel quer saber de David Grossman “qual é o papel do escritor em tempos de crise?” O prosador responde: “O único papel de um escritor é contar a história. (…) A escrita de ficção pode iluminar nossa situação se conseguir escapar da banalidade dos clichês, que levam a preconceitos e estereótipos. Dá um prazer quase físico libertar as palavras dos clichês e dar-lhes vida novamente, vê-las outra vez em contato com a realidade, respirando”.

Um clichê desmontado por David Grossman: “Outro dia, disseram que os combatentes do Hamas nasceram só para matar judeus. Não. Eles nasceram como todos os seres humanos, mas se transformaram em terroristas devido a uma certa situação religiosa, política e econômica. O que estou dizendo não tira a responsabilidade do Hamas nem joga nos outros uma culpa que é deles, mas é preciso entender como eles se tornaram monstros”.

Ao saber da morte do filho, Uri Grossman, o escritor admite que “fervia de ódio” e queria se vingar. “Mas descobri que o ódio me impedia de me conectar com meu filho. (…) Entendo o desejo de vingança. Mas vingança não é política, não muda nada, só cria sociedades dominadas pelo ódio.”

David Grossman defende “um cessar-fogo humanitário” na Faixa de Gaza. “Mas também quero que o Hamas seja punido pelo que fez. Nenhum país deve aceitar tamanho ataque a seus cidadãos.”

De fato, o escritor tem razão, mas o problema-chave é que um ataque desmedido na Faixa de Gaza, como está acontecendo, atinge menos o Hamas e muito mais palestinos inocentes. Uma vingança contra todos, deixando de ser específica — ou seja, contra os militantes do Hamas —, equivale à selvageria. Como evitar isto? Não sei. Mas é preciso buscar a paz.

Afinal, o que deixará Israel satisfeito? Tornar-se senhor da Faixa de Gaza? Se for, a guerra persistirá, e jamais haverá paz. O mais provável é que a guerra vai continuar, ainda que Israel passe a controlar Gaza. O terrorismo, mesmo enfraquecido, resistirá, com células menores, mas potencialmente agressivas e altamente perigosas.

Com a morte de Amós Oz (autor de “Judas”, 368 páginas, tradução de Paulo Geiger), A. B. Yehoshua (autor de “A Noiva Libertada”, Companhia das Letras, 629 páginas, tradução de George Schlesinger), Meir Shalev (autor de “Um Pombo e um Menino”, Bertrand, 364 páginas, tradução de Tova Sender), David Grossman diz que se sente órfão. “Éramos um quarteto, e sou o único que sobrou. Eles gostavam de decodificar a realidade e transformá-la numa história que vale a pena contar. Às vezes, me sento para escrever e percebo que o que a realidade está escrevendo lá fora é muito mais extremo, profundo e louco. Então, sinto a necessidade de escrever para entender e de articular as palavras precisas para ajudar também o leitor a entender”.

A relação entre escritores de Israel e da Palestina chegou a florescer, nos anos 90. “Contra a vontade do governo de Israel, nós promovíamos encontros. O diálogo era maravilhoso, nos ajudava a compreender uns aos outros. Esses encontros acabaram por pressão de líderes palestinos.”

Sousa Gabriel quer saber se David Grossman “ainda acredita na paz”. O escritor frisa que “não” consegue “responder agora” — digamos com os fatos quentes.

“Se os líderes do Hamas forem punidos, há chances de aprendermos a coexistir com os palestinos. A brutalidade do que aconteceu coloca em dúvida a capacidade de Israel de conviver com os palestinos. Nos últimos anos, Israel baixou a guarda, acreditando que os acordos com os países árabes seriam suficientes para a paz. Mas esses acordos ignoram os palestinos, que vêm sendo massacrados pela ocupação. Os ataques lembraram os judeus do Holocausto e vão dar força aos fundamentalistas, aos fanáticos de Israel. Não posso dizer que estou otimista, mas vou repetir o que venho dizendo há 45 anos: não me dou ao luxo de me desesperar”, assinala David Grossman.

Há um aspecto que faltou discutir: como punir o Hamas sem punir os palestinos? Como é difícil fazer a distinção, separando os terroristas dos não terroristas — a maioria absoluta —, o que acontecerá será uma carnificina, possivelmente. Palestinos inocentes vão pagar pelos erros do Hamas. Será que é isto que o Hamas quer, ou seja, aumentar o ódio dos árabes (não apenas dos palestinos) contra os israelenses?