Jorge Curi e Waldir Amaral: os dois principais narradores esportivos da era de ouro da Rádio Globo. Fotos: Agência O Globo
Jorge Curi e Waldir Amaral: os dois principais narradores esportivos da era de ouro da Rádio Globo. Fotos: Agência O Globo

Entre as décadas de 1960 e 1970, embora o País já estivesse mesmerizado pela televisão, a audiência do rádio esportivo era certamente alta. Nas cidades do interior de Goiás, ao menos até 1970, o rádio, sobretudo a Rádio Globo, era dominante. As pessoas ficavam em volta do rádio, quase sempre um gigante, ouvindo tanto notícias quanto jogos de futebol. Jorge Curi, Waldir Ama­ral, Antônio Porto e José Carlos Araújo eram os craques da narração esportiva. Mario Vianna —“com dois ‘enes’”, frisava — era o comentarista de arbitragem. Sem papas na língua, dizia, se necessário: “Ladrão!” Era empolgante.

Jorge Curi, Valdir Amaral, An­tô­nio Porto e José Carlos Araújo (o ú­ni­co vivo) tinham a capacidade de tornar o jogo mais emocionante e, ao mesmo tempo, crível. Eles eram dotados de grande imaginação esportiva e comunicacional. Sabiam pôr o jogo na cabeça do ouvinte. Es­cutando-os, com suas vozes perfeitas — como se fossem cantores líricos —, ficava-se com a impressão de que se estava vendo o jogo e, até, participando dele. O quarteto não gritava — está na moda gritar e ser grosseiro — e falava de maneira cadenciada, com vozes e linguagem precisas.

Lembro-me que eu e meus amigos, crianças apaixonadas por futebol — cheguei a ser um atacante de relativa qualidade —, discutíamos com frequência sobre quem era melhor: Jorge Curi ou Waldir Amaral (confira a narração). Quase sempre dava empate. Porque os dois eram mesmo muito bons. Tinham domínio preciso da palavra e entendiam de futebol. Eram apaixonados e racionais. Pode-se dizer que, paralelo ao clássico disputado no campo, havia um clássico disputado no rádio.

A Rádio Globo era tão excepcional, com uma cobertura de tão alta qualidade do futebol carioca, que, às vezes, ficava-se com a impressão de que nos outros Estados não havia futebol — exceto em São Paulo, com a Rádio Bandeirantes, onde brilhava Fiori Gigliotti (“Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo”), espécie de Graciliano Ramos da narração esportiva. Em Goiás, é claro, havia torcedores de clubes de São Paulo e Minas Gerais, para ficar em dois exemplos, mas não eram muitos. Eu era torcedor do Pelé Futebol Clube, opa, eu quis dizer Santos. Mas a maioria de meus colegas, dada a intensa cobertura da Rádio Globo, torcia, nesta ordem, para Flamengo — alguns diziam “Framengo” e os maliciosos riam —, Fluminense, Botafogo e Vasco. Aqui e ali, encontravam-se até torcedores do América. Embora o Santos fosse o time de minha devoção, eu torcia também para Flu­minense, Atlético Mineiro e Grêmio — e nem sabia da existência do Goiás, hoje, ao lado do Santos, o time de minha devoção.

Vi a Copa de 70, aquela do “Pra Frente, Brasil. Salve a Seleção”, numa televisão preto e branco, na casa de João Borges e Iodete, amigos dos meus pais, na cidade de Porangatu, no Norte de Goiás. A residência foi transformada em cinema, com gente em todos os lugares, até nas janelas. A imagem não era perfeita — os “chuviscos” misturavam-se aos jogadores e à bola. Mesmo assim, era um avanço e todos nós, adultos e crianças, estavámos muito interessados, embora, às vezes, eu me lembrasse do “radião” da nossa casa e, sobretudo, das vozes encantadoras de Jorge Curi e Waldir Amaral — cada um narrava um tempo do jogo.

Li, na revista “Exame”, que Walterci de Melo, o sócio do La­boratório Teuto, começou a vida vendendo telas de vidro para colocar na frente das televisões. As telas retiravam o brilho excessivo e reduziam os “chuviscos”, deixando a imagem eventualmente mais nítida. Mas, em 1970, Melo ainda era um jovem e não mascateava pelas cidades do interior. Con­tentávamo-nos, então, com as tevês brilhantes. Mais tarde, com a televisão em cores, a imagem melhorou e o rádio, com seus fantásticos narradores esportivos, foi sendo esquecido ou pelo menos perdeu prestígio.

Luciano do Valle e Galvão Bueno: na televisão, os dois substituíram as estrelas do rádio esportivo, com certa competência mas sem muito brilho. Fotos: Divulgação/ESPN e ESPORTV
Luciano do Valle e Galvão Bueno: na televisão, os dois substituíram as estrelas do rádio esportivo, com certa competência mas sem muito brilho. Fotos: Divulgação/ESPN e ESPORTV

Os narradores do rádio permanecem, alguns são muito bons, como Edson Rodrigues e Oscar Ulisses Santos, mas perderam a hegemonia para os narradores de televisão, como Luciano do Valle, Silvio Luiz, Galvão Bueno, Osmar Santos (criativo, mas, por problemas de saúde, fora do mercado), Cleber Machado e Milton Leite. Durante anos, na Globo e. depois, na Bandeirantes, Luciano do Valle foi a estrela. Luciano do Valle, que morreu na semana passada aos 66 anos, era articulado, bem informado e narrava tão bem quanto comentava. Nos últimos anos, havia perdido um pouco o vigor. Tanto que “perdeu” o posto de principal narrador para Galvão Bueno. Este não é superior. Mas, como a Globo transmite os principais jogos do país, deixando as quirelas para as outras emissoras, como a Band, Galvão Bueno firmou-se como “o” narrador.

Ao contrário do que sugerem alguns críticos, Galvão Bueno é um narrador competente, entende de futebol e tem noção exata do que é o meio televisão. O que lhe falta às vezes é capacidade analítica, discernimento crítico. Quanto à passionalidade, não há o que criticar, pois futebol é como o amor: exige paixão — ainda que, diferentemente do amor, exija, mais do narrador e do comentarista do que do torcedor, certo distanciamento para comparar e julgar as ações de jogadores, técnicos e árbitros com mais equilíbrio. Galvão Bueno quer ser um narrador-comentarista, o que não é. Sobretudo, é narrador, e dos bons. Foi um dos primeiros a entender que a narração da televisão não pode ser idêntica à do rádio e, portanto, precisa ser mais cadenciada e menos emocional — sem deixar de ser vibrante. Ele é mais detestado, especialmente por intelectuais, menos por si e mais por simbolizar a TV Globo.

Com a morte de Luciano do Valle, e com Galvão Bueno, o último dos moicanos, prestes a se aposentar, a narração esportiva começa a ficar cada vez mais técnica e didática. Está mais próxima de Parreira e Felipão do que de Telê Santana e Muricy Ramalho. Não há mais narradores-criadores, como Osmar Santos. Galvão Bueno talvez seja o último da estirpe. Os narradores jovens são mais “assépticos” e menos assertivos — o que, a rigor, não é defeito, e sim sinal de que entenderam os novos tempos. Eles se firmam como filhos da era da técnica, com a emoção mais controlada pela razão. Sempre vai aparecer um Neto e um Milton Neves, no campo do comentário esportivo, mas o estilo deles, passional e agressivo, está em decadência e sem nenhuma elegância.