Crônica de Roberto Drummond sobre Reinaldo diz muito sobre patrulha da imprensa contra Neymar

24 fevereiro 2018 às 13h35

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O ex-craque do Atlético Mineiro e o craque do Paris Saint-Germain são vítimas preferenciais das polícias do comportamento

Parte da imprensa espanhola (“El País” na comissão de frente) — quiçá com dor de cotovelo —, às vezes repetida pela imprensa brasileira, está agindo como polícia do comportamento quando se trata do atacante Neymar, do Paris Saint-Germain e ex-Barcelona. O jovem está jogando mal e pode ser avaliado por uma única derrota… para o Real Madri? Na verdade, ele está jogando muito bem. Quanto ao individualismo, craques são assim mesmo: são diferentes, não aceitam a mesmice. Porque sabem que, com um lance, podem decidir uma partida e, até, um campeonato. Não é puro futebol-arte — é futebol competitivo também.
Enquadrem Neymar, como policiais do comportamento, e o Garrincha e o Pelé que existem nele desaparecerá. Retirem sua alegria, e o amor pela bola sofrerá infarto. A impressão que se tem é que, tendo inveja de Neymar, querem arranjar um destino ruim para o menino da bola de ouro. O atacante se diverte e joga bem. O que mais precisa fazer? Querem que seja um missionário, um anacoreta. Não dá. Trata-se de um jovem de 25 anos, com os hormônios em dia e dinheiro farto na conta bancária. Ele precisa viver agora, na melhor fase de sua vida. Não há duas juventudes. Por que parte da polícia do comportamento quer evitar que viva a sua na plenitude?
O centroavante Reinaldo jogou 14 anos no Atlético, de Minas Gerais. Chegou lá menino e, desde cedo, se tornou o astro do time. Pelé, Sócrates, Toninho Cerezo, Zico e o Brasil — todos o admiravam. Era um craque completo, mas os zagueiros, de uma violência ímpar, abreviaram sua carreira. “Olha, até nisso eu dei sorte. Se o Reinaldo fosse fisicamente perfeito, poderia bem ser capaz de me relegar ao segundo plano”, disse Pelé.
Reinaldo driblava e chutava bem, sua inteligência tática era fora da média — até a bola, se falasse, o chamaria de Rei, como todos faziam. Brilhou tanto no Atlético quanto na Seleção Brasileira. Em 1982, depois de jogar no Torneio de Paris — o Atlético foi campeão —, a diretoria do Paris Saint-Germain decidiu contratá-lo.
No excelente livro “Punho Cerrado — A História do Rei” (Letramento, 307 páginas), Philipe Van R. Lima relata: “O presidente do clube francês chegou determinado: colocou duas malas em cima da mesa, uma com um milhão de dólares para Reinaldo e outra com um milhão de dólares para o Atlético. Esse valor era uma grande fortuna na época”.
O presidente do Atlético, Elias Kalil, vetou o negócio. “A proposta é boa, mas ele vale muito mais.” Reinaldo lamentou, mas continuou jogando seu belo futebol. Era tão vigiado e criticado quanto Neymar. A diferença é que, sendo de esquerda, recebia alguma proteção. Neymar, que curte a vida adoidado — sem jamais deixar de jogar um bolão —, mas não tem a ver com os bem-pensantes, é crucificado até mais do que o craque mineiro. Do livro de Philipe Van R. Lima, filho de Reinaldo, recolhi uma crônica do escritor Roberto Drummond, publicada em 31 de maio de 1981, no jornal “Estado de Minas”, que serve como uma luva para o caso de Neymar.
Roberto Drummond diz, em síntese: “Deixe Reinaldo viver!” Talvez seja preciso sugerir o mesmo agora: “Deixe Neymar viver”. Se jogar mal num jogo, perdoe. Se jogar mal dois jogos, releve. Se jogar mal três jogos, critique. Mas observe tanto seu histórico e os jogos seguintes. Pegar leve com Neymar tornará leve até quem está pegando pesado contra o craque que, em Paris, é Reymar. Leia o belo texto de Roberto Drummond:
Anistia para Reinaldo!
É o que hoje venho pedir. Porque Reinaldo vive numa prisão.
Chega de dizer que Reinaldo não pode patrocinar festas beneficentes.
Que Reinaldo não pode dormir depois das dez da noite.
Que Reinaldo não pode acordar antes das seis da manhã.
Que Reinaldo não pode amar.
Que Reinaldo não pode se entregar a uma furiosa paixão.
Que Reinaldo não pode frequentar uma roda tão alegre.
Que Reinaldo não deve entrar em bares, nem em boites,
Nem em festas.
Chega de ficar vigiando Reinaldo.
De querer saber aonde Reinaldo vai, com quem vai.
Chega de querer saber por que Reinaldo está tão alegre.
Ou por que, subitamente, Reinaldo ficou triste.
Chega de ficar fiscalizando se é mesmo guaraná que Reinaldo tem no copo.
Ou se é uísque que existe no copo de Reinaldo.
Chega de ficar vigiando os passos de Reinaldo em Ouro Preto, em Barbacena, Juiz de Fora, São João Del-Rei, ou no inferno.
Chega de ficar cercando Reinaldo com um arame farpado de ouro.
Chega de ter as belas e justas e respeitáveis intenções com Reinaldo, belas e justas e respeitáveis intenções que justificam a invasão da vida privada do jogador.
Chega de fofocar com Reinaldo.
Chega de inventar histórias sobre Reinaldo.
Chega dos que procuram o Atlético para contar travessuras de Reinaldo.
Olhem: Reinaldo não é mais o baby-craque.
Reinaldo é um homem, dono do seu próprio nariz, e o fato de ser um ídolo não justifica que queiram aprisionar Reinaldo.
Chega de arranjar uma noiva para Reinaldo.
Chega de querer arranjar uma esposa para Reinaldo.
Já basta a existência de centenas de milhares de casamentos arranjados no Brasil e, como não podia deixar de ser, em Minas.
Deixem Reinaldo escolher livremente a mulher de sua vida.
Oh, Reinaldo não é mais baby-craque e, além de tudo, tem que ser livre.
Reinaldo tem que ser livre para tudo, menos para uma coisa: estragar seu belo futebol, seu genial futebol.
Tudo o que afetar o futebol de Reinaldo tem que ser afetado.
Mas isso não quer dizer que ele deva viver em uma prisão dourada.
Eu penso que Reinaldo vive numa encruzilhada: ou ele coloca seu futebol acima de tudo ou acabará perdendo, não só o lugar na seleção brasileira, acabará também entrando num beco sem saída, num beco dramático.
Mas, para isso, Reinaldo não precisa viver numa prisão.
Não precisa abrir mão de prazeres inocentes e nem precisa ser vigiado como se fosse criminoso.
O que acontece com Reinaldo é que ele, desde que chegou ao Atlético, foi mimado e fiscalizado. Outro dia, Lúcia Helena Guimarães, ex-relações públicas do Atlético e pessoa da minha amizade, estava me dizendo: — O Reinaldo nunca pôde fazer o que os garotos da idade dele faziam. Sabia que até para ir ao dentista, o Reinaldo não podia ir sozinho, que o Atlético não deixava?
Eu é que levava o Reinaldo ao dentista.
Dessa maneira, hoje, que Reinaldo vive com a família, que tem dinheiro, fama, e uma vida de rei, ele vive a situação daquele rei da história, um rei que, quando criança, nunca brincou, e que, depois de adulto, resolver brincar de ser criança.
Aos 16 anos, Reinaldo devia ter saudade dos 14 anos.
Aos 18 anos, Reinaldo deve ter sentido saudados dos 16 anos.
Eu imagino que ele foi acumulando saudades e que hoje, aos 24 anos, tem saudades dos 22, dos 21, dos 20 anos, dos 19 anos, dos 18 anos.
Isso é terrível: então que Reinaldo viva sua condição de homem solteiro, livre, com liberdade para tudo, inclusive para aparecer nas revistas não apenas de futebol.
Minas, essa Minas que eu amo, é uma espécie de presídio.
Minas arma seus filhos de um material destinado a mudar o Brasil, seja no futebol, na política, na música, na literatura, seja nas finanças.
Mas Minas sempre pune os seus filhos.
Um jogador como Zico, como exemplo, que joga num clube de massas irmão do Atlético, que é o Flamengo, é respeitado na sua individualidade. E mesmo Zico se arma, como um deus, e forma uma barreira para que não se aproximem dele. Vocês dirão: — Zico não vive nos bares e boates…
Eu direi: — Zico vai a muitos bares e boates, acompanhado da mulher e dos amigos, e todos acham natural lá no Rio…
Aqui, já vi pessoas atleticanas e cruzeirenses se aproximarem de Reinaldo e falarem, por exemplo, com ele: — Falcão é muito melhor do que você…
Ou: — Você não pode ser comparado com o Tostão, porque o Tostão jogava bem noventa e nove por cento dos jogos e você joga bem só um por cento…
Minas é uma terra bela, mas cruel: é como certas mulheres, que picam em pedaços o homem que amam (ainda que se despedacem por dentro).
Minas avisa a seus filhos que estão se tornando famosos agredindo-os.
Reinaldo sabe disso: sabe disso na pele e no coração.