Não imaginava que uma hagiografia pudesse ter algum valor até ler “Fator Churchill — Como Um Homem Fez História” (Planeta, 461 páginas, tradução de Renato Marques), do britânico Boris Johnson.

Trata-se de um panegírico do primeiro-ministro inglês muito bem elaborado e até os excessos são perdoáveis. Aqui e ali, cheguei a pensar que Winston, e não Deus, teria “criado” o mundo. Entretanto, no geral, é um “ensaio biográfico”, composto de vários ensaios, digamos, fabuloso. Recomento até que, antes da leitura das melhores biografias, a de Andrew Roberts (a mais atualizada e precisa) e a de Roy Jenkins, o leitor brasileiro comece pela “pesquisa” de Boris Johnson. Para sair entusiasmado com o estadista que, sim, derrotou Adolf Hitler.

Boris Johnson com Zelensky: visita à Ucrânia | Foto: Reprodução

Churchill levantou os britânicos com palavras, que às vezes são mais traçantes do que determinadas balas. O mundo deve à verborragia de Winston, aos soldados da União Soviética de Stálin e aos recursos financeiros dos Estados Unidos de Roosevelt, o Franklin Delano, o fato de ter permanecido democrático.

Na quinta-feira, 10, Boris Johnson volta às livrarias com suas memórias, publicadas sob o título de “Unleashed” (Harper, 784 páginas). “Libertado” é uma tradução literal.

O jornal britânico “The Guardian” relata que o livro “já está no topo da lista dos mais vendidos da Amazon” (há também a versão para Kindle). Na categoria de não-ficção, é o terceiro mais vendido, e é preciso levar em conta que ainda nem foi lançado.

Em termos de vendagem, a obra do ex-primeiro-ministro da Inglaterra só está perdendo para “Simply Jamie”, de Jamie Oliver, e “Unruly — The Ridiculous History of England’s Kings and Queens”, de David Mitchell.

Boris Johnson embolsou, a título de adiantamento, 510 mil euros (mais de 2,5 milhões de reais) para escrever suas memórias.

A crítica corrosiva de Martin Kettle

O crítico Martin Kettle publicou uma resenha cáustica, levemente irritada, sobre as memórias de Boris Johnson. Saiu no “Guardian”.

De cara, Martin Kettle sustenta que as memórias não contêm “reflexões”. Boris Johnson não se preocupa com a questão, de acordo com o crítico. Como primeiro-ministro, seria omisso, em termos de saúde pública. O combate à pandemia de Covid-19 poderia ter sido mais eficaz se o primeiro-ministro fosse mais atento e, quiçá, bem-informado.

O livro relata a história do político que foi prefeito de Londres, ativista do Brexit, ministro das Relações Exteriores e primeiro-ministro da pérfida Albion. Um histórico supimpa para quem tem meros 60 anos de idade. E há, claro, o ensaísta de voos baixos, medianos e, às vezes, altos. Não tem, lógico, a estatura de um Christopher Hitchens — autor do excelente “Hitch-22” —, mas é, quase sempre, inteligente, divertido e corrosivo. Sabe incomodar os adversários políticos e, mesmo, os leitores.

Martin Kettle, do “The Guardian”: crítico visceral das memórias de Boris Johnson | Foto: Reprodução

Martin Kettle diz que até o título, “Unleashhed”, é enervante. Acrescenta que os leitores não devem “um exame de consciência” e tampouco confissões.

O “Daily Mail” sustenta que Boris Johnson escreveu “o livro de memórias políticas do século” (o 21, claro). Martin Kettle diz que é papo furado. Não diz com estas palavras, mas fica implícito que o jornal estaria fazendo “publicidade” da obra. O crítico lembra que o século só acabará daqui a 76 anos.

Feroz, Martin Kettle assegura que Boris Johnson é dado a “desonestidades e mentiras”. Falta ao crítico explicar do que está falando. “Johnson era um primeiro-ministro cronicamente indeciso” e não apreciava liderar.

De acordo com Martin Kettle, como primeiro-ministro, Boris Johnson cuidou mal do setor de saúde. A equipe do político não estava preparada para governar a Inglaterra, postula Simon Case, secretário do gabinete. Era caótica.

Os grandes acontecimentos da gestão do ex-primeiro-ministro são relatados. Entretanto, segundo Martin Kettle, Boris Johnson “se esquiva das questões maiores”.

No afã de desmerecer as memórias — a má vontade é evidente —, Martin Kettle assinala que, a despeito de Boris Johnson se apresentar como intelectual refinado, “não há uma frase filosófica em todo o livro”. Será? Temos de acreditar no crítico?

Boris Johnson, afiança o crítico, “usa regularmente uma cascata de palavras quando uma única seria suficiente”. No livro sobre Churchill, o “defeito” é aparente. Mas o autor poderá dizer: “É estilo”. Poderá, inclusive, citar o Proust de “Em Busca do Tempo Perdido”, uma das obras mais palavrosas (não vale a história de “menos é mais”; porque, no caso, não é) da história da literatura universal. Vale a ressalva de que o escritor francês permanece vivo porque, apesar dos períodos longos e cansativos — às vezes rebarbativos —, era um gênio literário inigualável.

O resenhista admite que, aqui e ali, o livro é divertido. Mas, por “falta de estrutura”, “se torna irritante”. É uma maneira civilizada — ou quase — de sugerir que a obra não tem pilastras seguras. Numa palavra, seria caótica.

Boris Johnson, postula o sisudo crítico, “usa sua inteligência, aparência [é um tipão assim meio Donald Trump] e persona para desviar de assuntos sérios e promover sua própria causa”.

Num tom por certo apelativo, que quase me fez desistir de concluir a leitura da resenha, Martin Kettle diz que “Johnson aperfeiçoou o papel do rei palhaço, cujo discurso ‘não é, na verdade, eloquente, e sim a caricatura da eloquência’”. A crítica é inspirada num comentário de Ed (Edward) Docx, publicado no “Guardian, em 2021.

Se há cousas frágeis e enganadoras, há também, admite Martin Kettle, “anedotas marcantes”. Afinal, como nós, leitores, sabemos, Boris Johnson é um bom contador de histórias. O livro sobre Churchill deixa isto patente.

Boris Johnson e Benjamin Netanyahu: o israelense teria grampeado o banheiro do britânico | Foto: Reprodução

O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, “plantou pessoalmente um dispositivo de escuta no banheiro do gabinete de Boris Johnson quando ministro das Relações Exteriores”? Martin Kettle frisa que o britânico “chega muito perto de sugerir” isto.

Martin Kettle conclui, no fim da resenha, que o livro de Boris Johnson é “superestimado”. O político e escritor não seria capaz de fazer uma obra de mais qualidade. “Ele não vai mudar”, enfatiza. O crítico indica que é melhor ler algumas páginas de “Johnson at 10 — The Inside History” (Atlantic Books, 650 páginas), dos historiadores Anthony Seldon e Raymond Newell.

No “The Times”, Daniel Finkelstein escreveu sobre o livro de Seldon e Newell: “Excelente… de primeira classe… justo e, ao mesmo tempo, condenatório”.

Bem, o que dizer depois da crítica de Martin Kettle? Simples: vou ler a obra de Boris, um Johnson menor do que Samuel e Paul, mas, ainda assim, sempre interessável.