Crime organizado é um problema brasileiro, não apenas do Rio Grande Norte
19 março 2023 às 00h41
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Há um Estado paralelo no Rio Grande do Norte (e talvez no Brasil) operado pelo crime organizado. A violência em Natal, Mossoró e outras cidades é articulada pelo Primeiro Comando da Capital e pelo Sindicato do Crime, uma dissidência do PCC. No momento, estão aliados com o objetivo de atacar o Estado e mostrar força.
Reportagem de Leandro Machado, da BBC News Brasil, mostra que “ônibus e caminhões foram incendiados. Em Natal, a circulação de ônibus e trens foi suspensa. O atendimento da coleta de lixo e de unidades de saúde foi interrompido e universidades, escolas e” lojas “fecharam as portas com medo de ataque”.
Não há dúvida: o Estado, o setor público, está acuado pelo crime organizado, que adota práticas terroristas. Há criminosos presos, mas as “empresas” criminosas permanecem ativas, como se fossem Estados Islâmicos do banditismo ou uma espécie de cangaço modernizado.
Por que o crime organizado, sobretudo o Sindicato do Crime, insurgiu-se contra o Estado? A matéria da BBC sugere que “os crimes teriam sido motivados pelas más condições dos presídios” do Rio Grande do Norte. “Em vistoria a cinco prisões do Estado, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, ligado ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, encontrou evidências de torturas físicas e psicológicas, falta de alimentação, desassistência em saúde e superlotação.” A perita Bárbara Coloniese afirma que, “no Rio Grande do Norte, o sistema prisional funciona a partir da prática sistemática de torturas físicas e psicológicas”. A antropóloga Juliana Melo corrobora ao sugerir que, nos presídios locais, não se respeita direitos estabelecidos, a alimentação é precária (e estragada), o que gera desnutrição, e há tortura.
A governadora do Estado, Fátima Bezerra, do PT, contesta e diz que sua gestão está se esforçando “no sentido de avançar com projetos de ressocialização, na área de educação, na área de preparação para o trabalho”. Bárbara Coloniese contesta, informando que “menos de 3% dos presos trabalham e praticamente não há ações para a ressocialização dos presos”.
Prisão não é jardim de infância nem spa. É local de exclusão daqueles que não sabem ou não querem viver em harmonia-paz com os demais cidadãos. Porém, o preso, como qualquer outro ser humano, deve ser tratado com dignidade. É criminoso repassar comida podre para detentos. Nem todos que estão presos pertencem ao crime organizado, porém, se não são amparados pelo Estado, acabam caindo nas mãos dos artífices do PCC e do Sindicato do Crime. Nas prisões, como está acontecendo nas do Estado nordestino, há dois Estados — o oficial, legal, e o criminoso, ilegal. Em algumas penitenciárias, talvez em todas, os presos são, por vezes, mais subordinados aos corifeus do crime.
O criminalista Gabriel Bulhões, professor de Direito Penal, garante que as violações aos direitos são acintosas nos presídios do Estado. “Se em uma cela cabem quatro pessoas mas abriga dez, não adianta você criar programas de leitura para diminuir a pena dos detentos. (…) Digamos que João foi preso por um crime não violento. Ele já entra na prisão devendo papel higiênico e escova de dentes para a facção do pavilhão onde foi parar. As dívidas só crescem. Quando ele sai, está preso à facção, e tem de cometer outros crimes para pagar o que deve.” Há celas com 40 presos. O Estado oferece 6.353 vagas nas prisões, mas há 7.804 presos. O déficit é de 1.451 vagas.
A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social apresenta outra versão para a crise provocada pelo crime organizado. Os ataques seriam “uma retaliação a ações policiais de combate ao tráfico [de drogas] e ao crime organizado”. É possível que a Sesed tenha razão em parte. Porém, há duas ressalvas. Se o governo do Rio Grande do Norte combate o PPC e o Sindicato do Crime, se as duas “instituições” (é o que estão se tornando) estão “tocando o terror” nas ruas de algumas cidades do Estado, parece evidente que sua política não está dando muito certo. Segundo, a tortura, a alimentação deficiente (malcheirosa) e a falta de saúde adequada são fatos — o que gera revolta em todos os presos, e não apenas naqueles que pertencem às organizações criminosas. Estas se aproveitam do problema para se fortalecerem e ganharem o apoio dos presos não-federados, digamos.
Há outra questão a considerar. A rigor, o PCC e o Sindicato do Crime não estão fazendo a defesa dos presos não “afiliados” — não são Robin Hoods. Na verdade, as duas organizações operam para enfraquecer o Estado e, com isso, facilitar suas ações. Noutras palavras, querem vender drogas e não serem combatidas. O objetivo é, portanto, atemorizar policiais, tanto militares quanto penais, acuando-os. “Deixem-nos em paz” — é o recado.
O promotor de justiça Ítalo Moreira disse à BBC que “as facções criminosas do Rio Grande do Norte nunca dormem, nunca estiveram sob controle. O que vimos, nos últimos dias, é reflexo de uma guerra que acontece há anos, de maneira silenciosa. São jovens que estão se matando e morrendo por causa de briga de facção”.
A taxa de homicídios no Rio Grande do Norte era de 9,57 assassinatos por 100 mil habitantes, em 2000. Segundo o Atlas da Violência, do Ipea, e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2019 o número subiu para 38,3 homicídios, mas em 2017 chegou a 62,8 mortes violentas. O aumento de mortes “coincide com a chegada do PCC ao Estado” e as outras regiões do Nordeste.
No “comércio” de drogas, como maconha, crack e cocaína, e de armas, o PCC e o Sindicato do Crime — que, unidos no momento, são inimigos figadais — estão sempre em guerra, se matando, como se fossem soldados e oficiais de uma guerra brutal e permanente, e também assassinando inocentes que cruzam seus caminhos. Pessoas que moram na região controlada pelo PCC podem ser mortas se se mudarem para uma região controlada pelo Sindicato do Crime e vice-versa.
O promotor Ítalo Moreira sublinha “que a maioria dos homicídios está relacionada” ao conflito entre o PCC e o Sindicato do Crime”.
A impunidade impera no Rio Grande do Norte. Em 2022 foram assassinadas 1100 pessoas. “A maior parte dessas mortes não é solucionada pela polícia potiguar. As investigações não conseguem apontar quem foram os autores dos crimes”, registra a BBC. Assim, aqueles que matam, julgando-se impunes, aceleram a violência. O Painel de Produtividade do Departamento de Homicídios aponta que, “dos 810 inquéritos policiais de assassinatos sob investigação”, sob a responsabilidade da Polícia Civil, “apenas 22,8% foram solucionados no ano passado — ou seja, apenas um em cada cinco homicídios foi esclarecido pela polícia” do Estado.
Ítalo Moreira assinala que a estrutura para realizar as investigações piorou. “Faltam pessoas e ferramentas. Muitos casos são arquivados. A impunidade acaba fomentando a violência, porque a pessoa mata e não é punida.”
“Cerca de 93%” dos assassinados “eram homens, 85% eram pretos ou pardos, 49% tinham entre 18 e 29 anos. 31% não tinham sequer completado o ensino fundamental, 54% não exerciam atividade remunerada e 39% ganhavam até dois salários-mínimos”. Ou seja: a maioria é pobre e não é branca.
Crime organizado opera em todos os Estados
Os Estados têm condições de lidar com a potência do crime organizado? Estados ricos, que têm condições de investir em presídios melhores e num combate mais eficiente à criminalidade, enfrentam o PCC, o Sindicato do Crime, o Comando Vermelho e o Novo Cangaço de maneira mais eficiente. Porém, Estados mais pobres, como o Rio Grande do Norte, têm mais dificuldades de enfrentar grupos que, organizados, são praticamente exércitos mafiosos.
Ante o crime organizado, o governo federal tem de ser mais eficiente e presente no apoio aos Estados. Fica-se com a impressão de que a esquerda, por recear a violência estatal, não trata a criminalidade com o devido rigor. E o crime organizado — que se tornou empresarial — só pode ser combatido por um Estado rigoroso, mais prático do que teórico. Se o Estado hesita, o Sindicato do Crime e o PCC se apresentam e se constituem em forças paralelas, cada vez mais fortes e até, em determinados bairros — e não apenas em favelas —, altamente conectadas com as comunidades (consta que proíbem assaltos e estupros).
Há indícios de que o governo Lula da Silva não percebe o crime organizado tão-somente como derivado de questões sociais. Porque o PCC, para citar um exemplo, é um empreendimento “moderno”, poderoso e milionário, com ramificações na Europa e nos Estados Unidos. Então, para combatê-lo, o Estado, os governos estaduais e federal, precisa agir com firmeza. Há uma guerra e vai perdê-la aquele que não compreender a força do inimigo.
O que está acontecendo no Rio Grande do Norte não é um problema apenas dos nordestinos. É um problema brasileiro. Porque o crime organizado está enraizado em todos os Estados. O que está acontecendo lá tende a acontecer em outros Estados, em breve. Então, é preciso cuidar melhor dos presos — qualquer pessoa deve ser tratada com dignidade e ter direito à defesa ampla — e, ao mesmo tempo, combater duramente o PCC, o Comando Vermelho, o Sindicato do Crime, os Guardiões do Norte, o Novo Cangaço, entre outras organizações. O que se espera do Estado é que seja “ativo”, e não meramente “reativo” ou “defensivo”. No Rio Grande do Norte, o Estado é o primeiro a chegar atrasado — não evita incêndios, contentando-se, em larga medida, em apagá-los.