Uma internet civilizada e democrática, com os cidadãos tão empoderados quanto os governos e as empresas, é possível — aposta Tim Berners-Lee

O general Golbery do Couto e Silva criou o SNI para ser os olhos e ouvidos da ditadura civil-militar. Tempos depois, lamentou: “Criei um monstro”. É como se o Serviço Nacional de Informação tivesse criado vida, tornando-se uma ditadura — a da informação — dentro da ditadura. O criador da World Wide Web, Tim Berners-Lee, pode dizer o mesmo? Talvez. Na verdade, a internet é tão valiosa quanto incontornável. As virtudes possivelmente são maiores do que os defeitos, ainda que estes sejam às vezes gigantes. A Fofocaland, com palavreado brutal e depreciador, segundo o professor Thjomas Pettitt, da Universidade do Sul da Dinamarca — citado por Caio Túlio Costa, —, é uma volta ao passado, não um avanço. “A maneira como se pensa agora seria uma reminiscência do modo de pensar de um camponês medieval, com base em fofocas, boatos e muita conversa. ‘O novo mundo é, em alguns aspectos, o velho mundo, o mundo antes da impressão’”, assinala Caio Túlio Costa. Estamos numa era que combina comportamento pré-Gutenberg e comportamento pós-Gutenberg, sobretudo em termos tecnológicos. Determinadas empresas, como Google e Facebook, comportam-se, com a suposta anuência do “cliente” — o método é a persuasão suave (participar de tudo é democrático e, sim, livre), um processo indutivo —, como se fossem verdadeiros SNIs. O objetivo, em tese, é tão-somente vender produtos. Mas há um controle quase absoluto de informações sobre os indivíduos — o que interessa às empresas, aos governos e criminosos isolados. Tanto que a venda de informações é crescente. Recentemente, um jovem brasileiro invadiu a privacidade de Sergio Moro, quando este era juiz, e de Deltan Dallagnol, procurador da República, e tentou vender (talvez tenha vendido) informações.

Tim Berners-Lee: o criador da internet quer radicalizar a democracia | Foto: Reprodução

A internet vai do luxo — por exemplo, no campo científico — ao lixo (como a devastação e desmoralização do indivíduo por outros indivíduos, além do controle de governos e do sistema de redes sociais e sites de busca). Mas é vital, não há como exclui-la e começar — outra coisa — tudo de novo. É possível aperfeiçoá-la, sobretudo na defesa das pessoas, notadamente na questão da privacidade (mas não só).

Reportagem de Jonas Valente — “Criador da www quer ‘consertar’ a internet” —, do Portal Comunique-se (www.comunique-se.com.br), contém informações importantes. Tim Berners-Lee, líder de um grupo de 80 organizações, divulgou proposta que sugere um novo “contrato” para a internet. O objetivo é “servir como guia para a formulação de medidas e políticas públicas relacionadas ao ambiente online. Governos, empresas e entidades da sociedade civil são convidados a endossar o documento”.

A difusão maciça de fake news — não é fácil separar o joio do trigo (o joio está prevalecendo) —, o discurso do ódio articulado e o vazamento de informações (o Facebook assume que dados de seus usuários vazam e fica por isso mesmo) são temas discutidos por Tim Berners-Lee e aliados. Mas não querem ficar só no diagnóstico. A garantia de que a internet será mais acessível e segura depende de algumas ações.

O grupo pró-internet mais civilizada e mais livre (missão quiçá impossível) propõe princípios para os governos, empresas e cidadãos.

Ação dos governos

“Para os governos, um dos compromissos é garantir que todos possam se conectar à internet. Entre as metas estão conectividade a 90% da população até 2030, assegurar que pacotes de 1 giga não custem mais de 2% da renda média em 2025 e 70% dos jovens com habilidades de lidar com tecnologias digitais até 2025”, frisa o Comunique-se.

Os propositores de uma nova internet postulam que governos podem oferecer incentivos fiscais com o objetivo de “estimular investimentos, compartilhamento de infraestrutura e medidas de acesso aberto nas grandes redes de atacado, além de autoridades regulatórias com poder para promover essas ações”. Sublinhe-se que, ao menos no Brasil, os incentivos fiscais estão sob bombardeio, porque são considerados como “renúncia fiscal” — o que contribuiria para reduzir a arrecadação dos Estados.

Os governos deveriam, segundo a proposta, trabalhar, de maneira firme e eficaz, na defesa dos direitos à privacidade e aos dados dos usuários. “A concretização passa por leis disciplinando a coleta e o tratamento de dados, assegurando como base a obtenção do consentimento livre, informado, específico e não ambíguo. Tais normas devem trazer os direitos aos titulares de acessar suas informações, opor-se a um tratamento ou a uma decisão automatizada, corrigir registros e fazer a portabilidade para outros controladores”, frisa o Comunique-se. Uma utopia? Sim, mas não fantasia. A internet parece “terra de ninguém”, com todos “soltos”, à disposição de uma barbárie globalizada, mas não é bem assim. Há quem ganhe muito dinheiro com o aparente “caos” da internet. O “descontrole” orgânico, tão útil ao Google e ao Facebook, só pode ser superado, ao menos em parte, pelos governos. Porque a determinadas empresas interessa manter a internet tal qual é hoje.

Um dos propósitos de Tim Berners-Lee e apoiadores é a limitação do “acesso a dados pessoais por autoridades ao que é necessário e proporcional ao objetivo, ancoradas em leis claras, vinculadas a ações motivadas pelo interesse público e sujeitas à análise do Judiciário”. O projeto prevê que “os próprios órgãos públicos diminuam a coleta de dados dos cidadãos e fiscalizem essa prática pelas empresas, de modo a verificar se ela corresponde à legislação e é feita de” modo “transparente”.

Empresas e inclusão

O projeto de Tim Berners-Lee propõe que as empresas ofertem “internet acessível, que não exclua ninguém de seu uso e construção”.

O grupo pró-nova internet avalia que uma rede efetivamente inclusiva pressupõe “um serviço com continuidade, o fomento a redes comunitárias, a proteção  do princípio da neutralidade de rede (o tratamento não discriminatório dos pacotes que trafegam) e a preservação de velocidades equivalentes de download e upload, de modo que os usuários possam ser não somente consumidores mas produtores de informação”.

As empresas, segundo o projeto, devem “desenvolver tecnologias que promovam o bem-estar e combatam abusos, de modo a potencializar a web como bem público e colocar as pessoas no centro”. A diversidade da sociedade tem de ser contemplada “por meio da criação de canais de escuta aos públicos usuários e atingidos” pelas tecnologias modernas.

Responsabilidade dos cidadãos

Há cidadania na internet? O termo cidadão pode ser substituído por “consumidor”? (no caso, consumidor não é apenas o que compra relógios, roupas, livros, mas também aquele que consome informações e é atingido, direta ou indiretamente, pelos mecanismos de busca e redes sociais. Ele próprio é “vendido” e talvez acredite que há alguma coisa de graça e livre na rede). A proposta de Tim Berners-Lee “convoca” os cidadãos-indivíduos “à participação na web como criadores e colaboradores, construindo comunidades fortes e comprometidas com o respeito à dignidade humana, e não utilizando as tecnologias digitais para práticas nocivas, como abuso, assédio e difusão de informação íntima que viole a privacidade dos indivíduos”. É possível? Depende, claro, da vontade (e conhecimento) dos indivíduos que queiram ser, de fato, cidadãos.

A proposta convida os cidadãos a batalharem por uma internet “mais democrática e empoderadora”. O Portal Comunique-se registra, baseado nas ideias dos colaboradores de Tim Berners-Lee, que “a mobilização passa pelo alerta por ameaças contra a internet e seu emprego como instrumento que provoque danos por parte de governos, empresas ou grupos privados. Os agentes do setor devem olhar para o futuro da internet como um bem público e um direito básico”.

O projeto de uma internet cidadã — civilizada e menos comercial (vende-se tudo, até o próprio indivíduo — um peão, às vezes inconsciente, do jogo empresarial) — vai esbarrar em vários drummonds. Primeiro, na força das empresas, que fabricam opiniões e disseminam-nas pela internet como se fossem verdades indiscutíveis. Segundo, contando com a colaboração de intelectuais e, até, de jornalistas, as empresas e seus epígonos vão sugerir que se estará trocando um Grande Irmão por um Super Irmão-Leviatã. Terceiro, a ação fiscalizadora do governo, pressionando em defesa dos cidadãos, será considerada como “censura”.  Mas o que Tim Berners-Lee sugere, de fato, é uma radicalização da democracia — da cidadania ativa e não reativa e passiva — na internet.

A inocência na internet, leitor, é, por vezes, só a sua. Você está sem proteção nenhuma entre hienas, leões, lobos, Facebook, Google e outros seres selvagens tanto quanto.