Com “Grande Sertão: Veredas”, o escritor mineiro interpreta a história patropi e põe o Brasil para dialogar com Joyce e Faulkner

Guimarães Rosa escreveu, com “Grande Sertão: Veredas”, um romance que rivaliza com livros poderosos como “Ulysses”, de James Joyce, e “Enquanto Agonizo”, de Faulkner | Fotos: Reprodução

O livro impresso vai acabar? É provável que não. Observe-se que a Companhia das Letras adquiriu os direitos de publicar — sim, vai imprimir — o romance “Grande Sertão: Veredas”, a obra-prima de um dos mais importantes escritores brasileiros, Guimarães Rosa. Como a Nova Fronteira perdeu o livro — e não um livro qualquer, e sim um par de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, e “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos — para a concorrente, até agora, que eu tenha visto, não foi explicado. (Há um conflito entre uma filha de Guimarães Rosa, Vilma Guimarães Rosa, e herdeiros da segunda mulher do escritor.)

“Grande Sertão: Veredas” sairá em fevereiro de 2019 e será (já é) uma das mais relevantes notícias do ano vindouro. É um acontecimento literário histórico… que deveria ser celebrado em praça pública… com foguetes. Pensando bem, com foguetes, não; meu labrador, João Fidelis, abomina fogos de artifício (eufemismo simpático, vá lá). O crítico alemão Willi Bolle sugere que o romance (re)conta a história do Brasil por meio da literatura — portanto, merece ser visto como uma interpretação do país, da mesma categoria de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, e “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda.

Publicado em 1956, há 62 anos, “Grande Sertão: Veredas” — o “Ulysses” brasileiro — é um portento literário e o romance que, ao lado dos livros de Machado de Assis, Graciliano Ramos e Clarice Lispector, tornou o Brasil, em comparação com outras nações, definitivamente moderno.

“Grande Sertão: Veredas” é uma resposta (e conexão) patropi às obras do irlandês James Joyce e do americano William Faulkner (o crítico e prosador Silviano Santiago escreveu um texto em que nota conexões entre os autores de “Sagarana” e “Enquanto Agonizo”) . Não uma cópia, mas um parceiro e, ao mesmo tempo, rival (porque inovador) de idêntica categoria — inclusive na paixão por “mixar” a cultura universal e torná-la “diversa” (também brasileira).

O alemão Goethe, por exemplo, está presente, de maneira nada invisível (mas transformado), no pactuário com o demo (Goethe talvez seja para Guimarães Rosa o que Ibsen representa para o autor de “O Retrato do Artista Quando Jovem”). O grego Homero, tanto o da “Ilíada” quanto o da “Odisseia”, não está ausente da peregrinação e das batalhas de Riobaldo Tatarana e, sobretudo, de Reinaldo Diadorim.

Diadorim é, quem sabe, um misto de Aquiles e Ulisses — com a vantagem de a personagem ser inclusive mais rica, dada sua ambiguidade: é mulher, é homem, é as duas “coisas”, e, sendo duplo, pode não ser uma coisa nem outra. É o que é, o que imagina ser e aquilo que o leitor quer que (não) seja. Diadorim é, por assim dizer, uma personagem moderníssima e Riobaldo, embora não pareça, também o é. Porque, no seu não-saber, há um saber de que, em Diadorim, há um ser mais múltiplo do que imagina nossa vã filosofia.

A Companhia das Letras fisgou a obra do maior poeta brasileiro, Carlos Drummond de Andrade, e agora conquista Guimarães Rosa. Com sua qualidade editorial, e sua presença fora do país — não se trata mais de uma empresa exclusivamente brasileira —, certamente fará muito para qualificar a apresentação gráfica do escritor mineiro, e para a divulgação de sua obra tanto no Brasil quanto no exterior. Nota da editora informa que seu projeto é ampliar a leitura e a assimilação cultural da literatura do notável prosador. É mais do que um projeto meramente comercial.

Nota da Companhia das Letras

“Com muita honra e entusiasmo, a Companhia das Letras anuncia que passará a publicar ‘Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, livro que revolucionou o cânone brasileiro. Ao retratar o sertão mineiro com absoluta inventividade, o escritor partiu da observação da linguagem popular para criar um repertório próprio, sem se limitar a mimetizar o modo de falar sertanejo. Guimarães Rosa dispôs da riqueza e da ousadia da língua para se aprofundar numa reflexão singular sobre a alma humana, atribuindo ao sertão sua dimensão universal.

“Para Antonio Candido, Guimarães Rosa ‘não era propriamente um regionalista’, uma vez que o elemento que sobressai em sua obra, de modo particular em ‘Grande Sertão: Veredas’, não é o exotismo, e sim o aspecto metafísico do homem em toda sua ambiguidade. Ao ponderar sobre o que chama de ‘drama ontológico’, o professor questiona: é o homem que faz o sertão ou é o sertão que faz o homem?

“Publicado originalmente em 1956, ‘Grande Sertão: Veredas’ é um dos romances mais estudados da língua portuguesa. Além de textos de Antonio Candido, a farta fortuna crítica dedicada ao livro inclui ensaios de Roberto Schwarz, Paulo Rónai, Davi Arrigucci Jr. e Augusto de Campos, para citar apenas alguns exemplos. O interesse que desperta de fato se mantém renovado nas subsequentes gerações de leitores, estudantes, pesquisadores e admiradores dessa obra lapidar.

“Em fevereiro de 2019, publicaremos ‘Grande Sertão: Veredas’ com novo projeto gráfico e estabelecimento de texto, acompanhado por célebres análises que jogam luz sobre a relevância do livro e uma cronologia ilustrada do autor. Para esta edição, contaremos com a colaboração de um conselho de especialistas em Guimarães Rosa e planejamos uma vasta campanha de difusão, com videoaulas, entrevistas, seminários e uma série de programas de podcast. Futuramente, o romance também ganhará versão em áudio e adaptação para graphic novel, bem como uma edição especial. Por fim, realizaremos uma ampla divulgação educacional, com a intenção de apresentar aos jovens leitores uma das obras mais celebradas da nossa língua.

‘“É a realização de uma vida’”, diz Luiz Schwarcz sobre a contratação de ‘Grande Sertão’. Para Otávio Marques da Costa, publisher do selo Companhia das Letras, e Alice Sant’anna, futura editora do livro na casa, ‘a importância de ‘Grande Sertão: Veredas’ coroa o catálogo da Companhia das Letras, que vem se dedicando a novas edições de clássicos modernos da literatura brasileira. Para nós, é motivo de enorme alegria receber Guimarães Rosa ao lado de nomes como Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Oswald de Andrade, Erico Verissimo, Jorge Amado, Murilo Mendes, José J. Veiga e Lygia Fagundes Telles, entre muitos outros autores que temos orgulho de publicar’”.