Comentaristas esportivos precisam separar o que é militância do que é análise

04 dezembro 2022 às 00h00

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Muito além do que fazem no âmbito do futebol, o ex-jogador Casagrande e a jornalista Milly Lacombe têm algo em comum: histórias de superação na trajetória pessoal e profissional. Ambos estão envoltos agora com a Copa do Mundo no Catar e sofrendo críticas por causa de seus posicionamentos incisivos, centrados principalmente na seleção brasileira e tendo como maior alvo Neymar, o principal jogador do elenco do técnico Tite.
Depois de pendurar as chuteiras, Walter Casagrande Júnior, hoje comentarista do portal UOL, esteve por décadas no posto de comentarista da TV Globo, participando de várias edições de Copas do Mundo e, ao mesmo tempo, lutando contra um drama sério e particular: o vício em cocaína, que quase o matou.
Autora de vários livros – uma biografia (da senadora paulista Mara Gabrilli) e romances inclusos, Milly Lacombe sempre foi reconhecida (e atacada) pela militância que faz pelos direitos da comunidade LGBTQIA+ – ela nunca escondeu sua homossexualidade e, ainda em 2004, escreveu “Segredos de uma Lésbica para Homens”, sua primeira publicação.
Milly adotou uma posição radical de recusa a Neymar, depois de o jogador ter declarado voto e fazer campanha para Jair Bolsonaro (PL) nas eleições presidenciais. Em debate no UOL nesta semana, a jornalista foi mais além: diante da pergunta do colega José Roberto Toledo sobre se torceria para a seleção agora que o craque se contundia, ela disse que não conseguiria, por conta das posições políticas dos jogadores, cuja maioria seria de alienados – melhor seria, então, ela falar sobre “posições apolíticas” – ou de apoiadores da extrema-direita.
Entretanto, ela disse que não conseguiu deixar de se comover com o belíssimo gol de Richarlison contra a Sérvia, o segundo dele na parte. O jogador do Tottenham, clube da elite inglesa, é um dos raros em seu meio que se dedica fortemente a causas sociais: já fez doação para projetos ambientais, leiloou uma chuteira para doar à pesquisa científica e tem um trabalho de base com crianças em sua cidade natal, Nova Venécia (ES).
Mas nem precisaria todo o ativismo espontâneo de Richarlison para se deixar levar pela beleza do gol. De fato, a plástica é imensa, desde o passe de Vinícius Júnior, que mostra todo seu talento ao tocar com a parte externa do pé direito. O artilheiro, então, faz o domínio da bola em uma posição perfeita para o voleio que executa em seguida. Em um momento daquele, a arte do futebol faz ser esquecido todo contexto político.
Foi isso que também ocorreu em 1970. Em plena temporada “hard” da ditadura, enquanto pessoas eram torturadas e desapareciam, a seleção de Pelé, Tostão, Rivellino, Gérson, Jairzinho e outros fazia beleza com os pés. E elevava o nome do País diante de todo o mundo, na competição mais importante de um único esporte no planeta. Dá para entender o “drama” de Milly, uma competentíssima jornalista: é muito difícil ser racional e ser torcedor ao mesmo tempo.
Já Casagrande tem um longo histórico de polêmicas na vida real e também nas redes sociais. Seus críticos buscam o desacreditar por ser um “drogado”, um “viciado”, o que mostra total falta de empatia com alguém que é dependente químico e se encontra abstêmio em uma luta que sabe que nunca acabará. Um comportamento covarde movido por questões políticas, já que o ex-jogador é abertamente de esquerda.
Mais ainda do que Milly, Casagrande tem muitas e velhas críticas a Neymar. Considera-o um jogador mimado, infantil, com “síndrome de Peter Pan”, sem foco e que busca mídia e atenção – no que o comentarista não deixa de ter certo grau de razão. Mas o fato de o craque ter se declarado um bolsonarista lhe acentuou o ranço à beira de uma Copa.
Atacar um ídolo lhe custa agora o aumento na saraivada de postagens ofensivas que recebe, quase sempre evocando seu problema com as drogas. Foi o preço que quis pagar.
Ter divergências políticas com jogadores, torcer ou não pela seleção na Copa, tudo isso Milly e Casagrande têm todo o direito de fazer. O que não pode haver é encontrar nesse desgaste pontos que interfiram em sua análise do jogo em si, já que são pagos para isso.