Com açúcar, com afeto: uma carta a Chico Buarque

15 fevereiro 2022 às 10h10

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Sua música foi semeada no campo dos desejos humanos, demasiadamente humanos e, felizmente, brota
Caro Chico,
Cresci te ouvindo durante a infância, nessa compreensão incompreensível de quem ouve, insiste no que ouve, repete a agulha naquela faixa do vinil, cinco, dez vezes, mas não sabe o que exatamente toca, apunhala e acaricia. E ali, naquele lugar de aconchego e desespero, sua música me abraçava. Dois, três, quatro, cinco, seis anos de idade. Nasci em 1972, de pais clandestinos. Sua música era, para mim, o lar constante diante das casas alternadas, das mudanças irremediáveis, imprevisíveis, misteriosas e doloridas. Pedaço de mim é a minha (sim, ela é minha, aproprie-me dela, desculpe-me o atrevimento) música mais odiada porque não consigo ouvi-la sem lágrimas e dor no peito; sem que o mundo se desfaça e eu me perca nessas ruínas por um tempo incontável. Não te perdi na adolescência, embora a fúria poligâmica proporcionada pelos revoltosos hormônios fizessem minha alma e meu clitóris tremer por outros e outras. Qual o quê! Pouco importa. Você era o lar infantil que não tive, a constância na inconstância; mas nunca, penso agora, a previsibilidade. Você, quero dizer, sua música – mas também sua figura, sua imagem – era levada para todas as cidades, bairros e estados, esses lugares onde me sentia perdida, sem nome, sem norte e sem eixo.
Não fui educada, de modo algum, para ser esposa, recatada e do lar. Cresci no vazio imenso aberto entre um mundo por fazer, uma sociabilidade nova, revolucionária, libertadora e as censuras e castrações mas também as possibilidades desse mundo bem real, dolorosamente e excitantemente real. Cresci aberta, devo dizer, embora não saiba, até hoje, o que isso significa. Talvez essa fenda seja uma ferida. Talvez seja a fresta por onde se pode olhar o proibido. Cresci entre a imaginação fervilhante de larvas da arte, o devir utópico e as opressões de todo dia. Foi ali, nessa abertura, que você se instalou.
Falo excessivamente de mim querendo chegar, com açúcar, com afeto, à música, que, para minha tristeza, você afirmou: não mais cantará. Canto eu, irremediavelmente desafinada. Não vi o documentário sobre Nara Leão. Não vi ou ouvi, ainda, de sua boca, que não mais a cantará. Se a reportagem da Globo foi fidedigna às suas palavras, você teria dito que “não passava pela cabeça da gente que isso era uma opressão, que a mulher não precisa ser tratada assim”. Se é isso mesmo, gostaria de lhe dizer como essa música aporta em mim, nesse ínfimo lugar, em minha abertura. Essa mulher que espera seu homem, essa mulher que lhe faz o doce preferido sabendo que o açúcar nada pode contra o apelo das peles coloridas das outras, essa mulher que sabe e prefere ignorar as inverdades desse homem, essa mulher sou eu. Também sou eu esse homem que sai de casa com seu melhor terno para a oficina. Sou esse homem que rememora e comemora nos bares das esquinas com os amigos provisórios dos copos de cerveja e discute futebol. Sou eu, ainda, esse homem que deseja as mulheres ociosas das praias, que canto bêbado e volto para casa, maltrapilho e maltratado, mamado, chumbado e atravessado, para ser acolhido por uma mulher que me quer e aceita. Sobretudo, sou esse homem que nada sabe de si, que ignora seu próprio desejo. Esses dois se encontram nesse lar onde uma permanece e o outro retorna. Se encontram no desencontro de seus desejos.
Não sei o que o feminismo tem a dizer sobre isso. Embora, creio, haja muitos feminismos. Mas sei que essas paixões, essas errâncias do desejo, essa inviabilidade do amor, isso não diz da opressão. Isso diz respeito e fala do fundo da alma humana, essa que é incontornavelmente contraditória, angustiantemente incompleta e bela em suas imperfeições. Sua música, meu caro amigo (permita-me tratá-lo assim) não está presa ao tempo das mulheres donas de casa, reféns dos maridos que dizem sustentá-las. Sua música foi semeada no campo dos desejos humanos, demasiadamente humanos e, felizmente, brota. Com o abraço da Ana Lucia Vilela