João Alberto, um homem negro, de 40 anos, foi brutalmente assassinado por seguranças do supermercado Carrefour. E há quem queira que os não-racistas fiquem quietinhos

Um homem morreu. Não só. Um homem foi assassinado. Não só. O morto é negro. Não era branco: Ser preto: eis o seu “pecado”. Os assassinos são brancos.

Um dos assassinos era integrante da Polícia Militar e estava fazendo um “bico”. O outro é segurança contratado por uma empresa privada. Por que o hipermercado Carrefour — empresa da libertária França — contratou um soldado? Por que tem licença para matar, um James Bond de farda?

Um negro morreu. Assassinado.

João Alberto, negro: assassinado por seguranças do Carrefour | Foto: Reprodução

O Carrefour rompeu o contrato com a empresa de segurança e promete desligar a funcionária que não coibiu a violência. Fica a pergunta: cadê a direção da empresa, que certamente deve ter sido avisada pelos que controlam as câmeras da central de segurança do supermercado? Nada quis ver? Quem viu talvez tenha pensado: “Ah, é só um negro”. Diga-se que uma funcionária do Carrefour tentou intimidar pessoas que assistiam — passivas, talvez por medo de também serem agredidas — a selvageria.

Mataram um negro. Invisível, por certo. Por ser preto. Ralph Ellison, James Baldwin e Toni Morrison, os grandes escritores negros dos Estados Unidos, diriam: morreu porque era invisível, mas não tão invisível que não pudesse ser espancado até a morte.

Um homem negro foi assassinado publicamente. Desta vez, graças às câmeras, que filmam tudo, a brutalidade, vista, pôde ser denunciada. Chorada. Lamentada.

João Alberto tinha 40 anos e deixa quatro filhos | Foto: Reprodução

Os assassinos estão presos. Um deles vai dizer, à polícia e em juízo: “Fui agredido primeiro”. Pronto: quem leva um soco ganha o direito de matar, sobretudo se o Outro, um homem, é negro.

João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, gritou: ‘Milena, me ajude!” Milena, nome de uma namorada de Kafka, nada pôde fazer. Não tinha a força dos brutamontes que mataram seu marido, seu amor.

Asfixiaram João Alberto. Por que ele contou uma piada ou brincou? Ah, sim, o estatuto do racista sustenta que só brancos podem contar piadas e brincar. Por certo, é assim. Negro é só para participar do “coro”.

O fato aconteceu em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Ah, Sul profundo. Ali perto, em Santa Catarina, há uma governadora cujo pai é neonazista, fã ardoroso de Hitler. Ah, Deep South. No belo, doloroso e impactante “A Canção de Solomon”, Toni Morrison, Nobel de Literatura, conta a história de um grupo de rapazes negros que, quando um negro era assassinado, matava um branco. Terrível? Sim. Se fosse o contrário, o que aconteceria? No Brasil, quase sempre, nada.

Milena Borges Alves: não teve como salvar o marido | Foto: Reprodução

Negros e brancos, irmanados, protestaram numa unidade do Carrefour. Duramente. Quebraram coisas. Não mataram ninguém. Mas Monalisa Perrone, apresentadora de primeira linha da CNN Brasil, descabelou-se. O cinegrafista mostrava três brancos, de classe média, assustados. Sim, não se defende violência contra eles, contra ninguém. Mas fica a impressão de que, contra os negros, a violência é aceitável. O humanista Leonardo da Vinci, Monalisa Perrone (sobrenome italiano), não aprovaria isto…

A CNN Brasil mostrou-se mais preocupada com objetos quebrados do que com a vida de João Negro, um negro. Na verdade, a rede americana-abrasileirada condenou o assassinato e admitiu que João Alberto foi mesmo vítima de racismo. Entretanto, o “susto” de Monalisa Perrone — seu olhar apavorado e condenatório — parece maior com o vandalismo do que com o assassinato.

Pois é: um homem negro, João Alberto, foi assassinado. E, ainda assim, há quem queira que os negros e os brancos não racistas fiquem quietinhos, esperando uma justiça que nem sempre vem. Quando o caso está exposto, a condenação é geral. Mas, como se sabe no Brasil, quando um caso sai da mídia, dos holofotes, é hora dos ajeitamentos, dos jeitinhos. É preciso mesmo ir para as ruas, para a porta dos supermercados e gritar contra a barbárie e cobrar civilização. Mas civilização para todos, não só para os brancos.

Os assassinos merecem condenação — anos de cadeia. Mas não se deve isentar o Carrefour, não se deve culpar tão-somente os assassinos diretos. Lembram-se do cachorro Manchinha? Era inofensivo. Pois um segurança do Carrefour, de Osasco (SP), o matou. O que que há, franceses do Carrefourt? Cadê a veia libertária do capitalismo de face humana da França de Émile Zola — o de “Eu Acuso” — e Simone de Beauvoir?

O vice-presidente Hamilton Mourão, um general sensato — tanto que pensa diferente do presidente Jair Bolsonaro —, disse que não há racismo no Brasil. Se Bolsonaro é um soldado invernal da Guerra Fria, cuja mente é controlada pelo passado, ainda que o corpo esteja no presente, Mourão precisa, urgente, de uma cirurgia de catarata (outra estupidade na sua fala: o uso da expressão “gente de cor”). Há racismo no Brasil. É um fato. Todos sabem disso, e nem os racistas negam. Eles matam… negros.

João Alberto está morto, será enterrado. Deixa a mulher e quatro filhos. Era negro. E negro, no Brasil, é criminoso desde o nascimento. Por ser negro. Desencavaram sua ficha policial. Sim, não era perfeito. Ninguém é.

Quem chora por Milena? A CNN Brasil não chora. Lamenta vidros e carrinhos de supermercado quebrados. Mas cá entre nós, diriam Machado de Assis e Lima Barreto, negros geniais: uma vida não é mais importante?

Sim, a vida não tem estepe, é uma só. Morreu, sabe-se para além do Carrefour e da CNN Brasil, acabou. Vidraças, para-brisas e carrinhos podem ser trocados.

Yes, nós temos George Floyd. Que vergonha, Brasil!

O Dia da Consciência Negra foi cinza para todos os brasileiros.