Claudio Magris compara o Nobel chinês Mo Yan a Guimarães Rosa

26 maio 2021 às 17h22

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Um dos mais importantes críticos italianos frisa que a prosa épica e inventiva do autor de “Sorgo Vermelho” aproxima-se da literatura de Faulkner, García Márquez e do autor de “Grande Sertão: Veredas”
Resenha publicada em 2013
No ensaio “O sul da literatura”, publicado no livro “Alfabetos — Ensaios de Literatura” (Editora UFPR, 452 páginas, tradução de Maria Célia Martirani), Claudis Magris, um dos mais importantes escritores e críticos italianos, faz uma análise perceptiva da literatura do escritor chinês Mo Yan, Prêmio Nobel de Literatura de 2012, e a compara à prosa do brasileiro Guimarães Rosa.
Ao analisar o romance “Sorgo Rosso”, a obra-prima de Mo Yan (seu nome é Guo Moye), o crítico Goffredo Fofi se perguntou se o escritor chinês havia lido o norte-americano William Faulkner. Sim, havia lido tanto o autor de “O Som e a Fúria” quanto o colombiano Gabriel García Márquez. Os autores de “Enquanto Agonizo” e “Cem Anos de Solidão” foram e são “modelos fundamentais” para a prosa do criador de “Sorgo Vermelho”.
Na avaliação de Claudio Magris, com sua crítica repleta de poesia, “nenhuma outra realidade, sob nenhum céu, oferece hoje, a um escritor, um material tão rico, contraditório, convulso, lacerado, desmesurado para representar o caleidoscópio da vida, como a China”. O crítico italiano frisa que “Mo Yan soube estar à altura dessa vital e destrutiva riqueza de experiência e é por isso um dos maiores escritores contemporâneos, capaz de desempenhar, com absoluta originalidade, a tarefa do narrador, que é o de contar histórias individuais, ao mesmo tempo em que faz com tenha vulto, a história universal. A China […] dá a um escritor a possibilidade de escrever como um autor épico da tradição e, simultaneamente, como um autor pós-moderno, a partir de uma remota esquina da província e, também, do centro do mundo”.

Para Claudio Magris, “Mo Yan sabe captar e restituir essa perturbadora multiplicidade, que é também copresença dos tempos históricos diversos e sabe transformá-la em linguagem e estilo; em uma sangrenta, imaginosa, imprevisível, múltipla e também concreta, invenção linguística, que restitui a totalidade do mundo”.
Tende-se a dizer que Mo Yan, de 55 anos¹, é um escritor “do regime”, sobretudo a partir das opiniões de um escritor chinês dissidente. Talvez seja mais adequado sugerir que Mo Yan é um autor que, ao seu modo, burla e ultrapassa a estética exigida pelo regime. Segundo o relato de Magri, “teve alguma dificuldade com a censura (especialmente pelo arroubo, poeticidade e violento erotismo de suas páginas). O seu romance ‘Grande Seno, Fianchi Larghi’ [publicado em Portugal com o título de “Peito Grande, Ancas Largas”] foi retirado do comércio pelas autoridades e veiculado pela crítica ao regime oficial. Por tais razões, foi reimpresso e vendido ilegalmente e acabou saindo tanto que teve sua edição esgotada rapidamente”.

Ao permanecer na China, sobretudo ao publicar no país, sob um regime comunista que, apesar do simulacro de abertura, ainda é extremamente rígido, Mo Yan faz concessões literárias? Magris sustenta que, como escritor, Mo Yan não serve ao regime, antes serve aos leitores chineses e universais. “Nos grandes afrescos e nos breves contos de Mo Yan se encontra, como em ‘Grande Seno, Fianchi Larghi’, a saga não apenas de uma família, quanto da história chinesa de 1900, representada com imparcialidade ideológica; encontra-se, como no admirável ‘Sorgo Rosso’, não apenas, mas principalmente, a guerra, em todo o seu devastador e lancinante suplício e se toma conhecimento da terrível realidade da China agrária, com a sua maldição arcaica e moderna, os seus círculos de brutalidade, solidão, compaixão familiar, crueldade — a sufocante limitação da vida de família e de casal, a busca pelo filho homem e a consequente dificuldade da condição feminina, os abortos, os infanticídios”, anota Magris.
Guimarães Rosa, criador épico
Sem fazer discurso, o do engajamento ideológico e partidário direto, e sim ao mostrar à exaustão a China como é, e não como deveria ser, a obra de Mo Yan não deixa de ser, pois, uma crítica contundente àquilo que chamamos de realidade. Como observa Magris, “é a grande literatura que faz compreender a fundo, com uma radical humanidade, isenta de ideologias e moralismos, uma realidade terrível. O aborto, o abandono dos recém-nascidos, a infância comparecem, com insistência, em alguns extraordinários contos, por exemplo ‘Esplosioni’, que está na antologia ‘L’Uomo Che Allevava i Gatti’, autêntica obra-prima”. A diferença é que, ao contrário dos autores suposta ou eminentemente políticos, que se organizam como “oposição” ou mesmo “situação”, Mo Yan não faz pregações. Pelo contrário, na verificação precisa de Magris, o escritor, no lugar de pregar, “conta, inventando uma linguagem própria, de original potência dramática, às vezes dulcíssima, mas, com maior frequência, violenta. Uma linguagem que nasce junto com o mundo que narra e que é reinventado, como nos dos grandes autores experimentais e, entretanto, classicamente compreensível, genuíno e originário, como sempre é originária toda a experiência fundamental do indivíduo, que acontece aqui e agora, mas, também, sempre. Além de Faulkner e de Márquez, vem à mente, nesse sentido, um outro grande criador épico, Guimarães Rosa”.

Se não é um autor revolucionário em termos políticos, se não vai às ruas fazer pregações contra o regime comunista, que certamente o observa com desconfiança — por ser avesso às ideologias diversas —, Mo Yan é revolucionário como escritor. Na sua “linguagem torrencial e impiedosa, envolvente, transbordante e precisa, audacíssima nas imagens e no ritmo, quem parecer estar falando é a vida, em sua totalidade, infinitamente variada e irregular, desconhecedora da sucessão temporal, da qual temos necessidades para termos a ilusão de que a dominamos. O tempo épico é a copresença dos tempos e vozes diferentes, a contemporaneidade de momentos diversos, passado que aflora novamente e rasga o presente, gerações sugadas em um vórtice de desejo e morte, histórias que vão e vêm como as vozes que se difundem no ar e estão sempre presentes em qualquer parte”.
Pelo menos duas obsessões dominam a épica de Mo Yan: o sexo e a violência. Magris ressalva que “há também o amor, a piedade, a ternura, especialmente nas inesquecíveis personagens femininas”. O crítico italiano frisa que “Mo Yan sabe transformar até a fixação erótica mais maníaca em vida calorosa e acolhedora. […] Mo Yan, diria Kafka, é um dos grandes, cuja leitura nos golpeia como um soco e nos descortina, como um rasgo, um novo horizonte”. (O texto de Magris foi publicado em janeiro de 2005 no “Corriere della Sera”, bem antes da fama recente de Mo Yan.)
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Magris: Guimarães Rosa é um dos maiores escritores do século 20
O mineiro de Cordisburgo João Guimarães Rosa, autor de “Sagarana” e “Grande Sertão: Veredas”, é um dos escritores mais admirados pelo crítico italiano Claudio Magris. O autor patropi é citado em quatro páginas do livro “Alfabetos — Ensaios de Literatura” (Editora UFPR, 452 páginas, tradução de Maria Célia Martirani).

Na página 18 do belo ensaio “Livros de leitura”, no qual fala de suas primeiras leituras — “Os Mistérios da Floresta Negra”, de Emilio Salgari, foi o primeiro livro que leu —, Claudio Magri escreve: “Houve uma entonação fundamental que recebi dos grandes escritores épicos, sobretudo de Tolstói, e também de Melville, Guimarães Rosa, Faulkner, Sábato, Nievo, para os quais a existência, não obstante toda dilaceração, tem um sentido, uma unidade”.
Na página 323, Claudio Magris registra: ‘“Sobre Heróis e Tumbas’ [de Ernesto Sábato] é uma obra-prima, que se alinha ao ‘Grande Sertão: Veredas’, de Guimarães Rosa, o maior romance sul-americano e um dos maiores do século”.
Na página 347, ao comentar o romance “Absalão, Absalão!”, de Faulkner, Claudio Magris anota: “Entrar num grande livro é como entrar no mundo, isto é, ser aturdido, extraviado, desarvorado pelo seu estrépito ou por seu silêncio, igualmente inexplicáveis. Também no início de ‘Guerra e Paz’ ou do ‘Grande Sertão’, por algum tempo, não se entende nada, nos perdemos no vaivém de pessoas, coisas, destinos, nos atordoamos como quando estamos no meio de uma multidão desconhecida”.
Na página 354, Claudio Magris compara Mo Yan, o nobelizado escritor chinês, ao autor brasileiro. O crítico italiano diz que o brasileiro é um “grande criador épico”.
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Mo Yan diz que “Peito Grande, Ancas Largas” é seu livro obrigatório
“Peito Grande, Ancas Largas”, um dos mais importantes livros do Nobel de Literatura chinês Mo Yan, saiu em Portugal pela Editora Ulisseia (604 páginas).

Sinopse divulgada no site da Livraria Bertrand (www.bertrand.pt): “O presente romance, publicado na China em 1995, causou grande controvérsia. Algum conteúdo de teor sexual e o facto de não retratar uma versão da luta de classes consentânea com os cânones do Partido Comunista Chinês obrigaram Mo Yan a escrever uma autocrítica ao seu próprio livro, e, mais tarde, a retirá-lo de circulação. Ainda assim, inúmeros exemplares continuam a circular clandestinamente. Num país onde os homens dominam, este é um romance épico sobre as mulheres. Sugerido no próprio título, o corpo feminino serve como imagem e metáfora ao livro. A protagonista nasce em 1900 e casa-se com 17 anos. Mãe de nove filhos, apenas o mais novo, é rapaz. Jintong é inseguro e fraco, contrastando com as oito irmãs, fortes e corajosas. Cada um dos 6 capítulos representa um período, desde o fim da dinastia Qing, passando pela invasão japonesa, à guerra civil, à revolução cultural e aos anos pós Mao. Um romance que percorre e retrata a China do último século através da vida de uma família em que os seres verdadeiramente fortes e corajosos são as mulheres.”
Mo Yan disse de seu livro: “Se quiserem, podem ignorar todos os meus outros livros, mas é obrigatório que leiam ‘Peito Grande, Ancas Largas’. É um romance sobre a história, a guerra, a fome, a política, a religião, o amor e o sexo”.
O livro “Mudanças” (Divina Comédia, 155 páginas), de Mo Yan, também saiu em Portugal. Sinopse transcrita do site da Livraria Bertrand: “Em ‘Mudanças’, Mo Yan descreve, na primeira pessoa, as alterações políticas e sociais no seu país ao longo das últimas décadas, num romance disfarçado de autobiografia, ou vice-versa. Ao contrário da maioria dos escritos históricos sobre a China, que se limitam a narrar acontecimentos políticos, ‘Mudanças’ conta a história do povo, numa perspectiva mais intimista de um país em transformação. Avançando e recuando no tempo, Mo Yan dá vida à História, descrevendo com acutilância e muito humor os efeitos dos acontecimentos do dia a dia na vida do cidadão comum”.
Comentário do “Publishers Weekly”: “A haver um Kafka na China, talvez ele seja Mo Yan. Tal como Kafka, Mo Yan possui a capacidade de analisar a sua sociedade através de uma multiplicidade de lentes, criando transformações fantasistas ao jeito da Metamorfose ou evocando a burocracia entorpecedora e a crueldade despreocupada dos governos modernos”.
Booklist: “Com tanto de astuto como de fascinante, Mo Yan está empenhado em explicar o sofrimento e a resistência das pessoas normais e em contar uma belíssima história”.
Nota
¹ Mo Yan hoje, 2021, tem 66 anos. A Editora Companhia das Letras publicou o romance “As Rãs” (496 páginas, tradução de Amilton Reis).