Ciência política terá de explicar como o bolsonarismo gestou e fidelizou um grande eleitorado de direita
20 novembro 2022 às 00h00
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O governador de Minas Gerais, Romeu Zema, do Novo, decidiu fazer um balanço da eleição presidencial (como se sabe, o líder mineiro planeja disputar a Presidência da República em 2026).
De acordo com o “Estadão”, Zema disse que as pessoas ficavam “angustiadas” com os discursos do presidente Jair Bolsonaro, sobretudo durante a fase aguda da pandemia. “Mais do que ter perdido para o próprio candidato Lula, o presidente Bolsonaro perdeu para si mesmo, devido à forma de condução da comunicação.”
Numa entrevista à Rádio Super FM, o gestor mineiro sublinhou: “O próprio presidente, que tem boas intenções, muitas vezes em seus discursos ele acabou não sendo feliz. (…) Durante a pandemia, a comunicação do governo federal deixou muito a desejar. Quando você está lidando com algo que você não conhece, é bom você não menosprezar. Você está menosprezando algo que alguém está aflito em relação àquilo, então acaba tendo um reflexo negativo”.
Zema acerta e erra? Parece que sim. Bolsonaro efetivamente deixou milhares, talvez milhões, “angustiados” (parece insensível à dor alheia). Mas sua grande votação indica que há uma espécie de “vitória”, por estranho que pareça dizer isto, na sua derrota. Acrescente-se que perdeu para Lula da Silva, e não para si mesmo. O postulante petista conseguiu “vender” esperança para um número um pouco maior do que o candidato do PL.
Como Bolsonaro, do PL, perdeu e Lula da Silva, do PT, ganhou, as avaliações sugerem “fragilidade” do líder da direita e “força” do candidato da esquerda.
De fato, como Lula da Silva venceu, há pouco a discutir sobre os números. Afinal, uma vitória, que seja por um voto, é uma vitória. Com o tempo se esquece o, digamos, placar.
Mas os números, tanto de Lula da Silva quanto de Bolsonaro, são expressivos e dizem mais do que parecem sugerir.
Primeiro, como se repetiu em todos os comentários, Lula da Silva só venceu no Nordeste, e com uma frente expressiva: 69,34% contra 30,66%. Um verdadeiro massacre.
Segundo, Bolsonaro, apontado como agente do atraso, venceu nas regiões mais desenvolvidas e modernas do país. No Sudeste, ficou com 54,26%e Lula da Silva com 45,74%. No Sul, o petista obteve 38,16% e Bolsonaro 61,84%. No Norte, região menos desenvolvida, Bolsonaro também ganhou, com 51,03% — e Lula levou 48,97% dos votos.
No total, Lula da Silva obteve 60.345.999 votos (50,90%) e Bolsonaro conquistou 58.206.354 votos (49,10%). A diferença foi bem pequena: 2.139.645 votos.
A vitória do postulante do PT esconde, por assim dizer, a força eleitoral de Bolsonaro, quer dizer, da direita.
Não se deve desmerecer a vitória de Lula da Silva — de fato, expressiva. Em especial porque ele havia sido preso e, ainda assim, deu a volta por cima. Mas aquele que quiser entender a política brasileira daqui para frente tem de examinar, com cuidado e atenção, a votação do candidato da direita — quase 60 milhões de votos.
Por certo, durante os próximos anos, cientistas políticos e sociólogos vão examinar, com acurácia, o eleitorado “de” Bolsonaro. Eles terão de explicar, com análises atentas — de caráter científico —, quem são os eleitores do presidente. Nós temos alguns dos melhores cientistas políticos do mundo, que certamente estudarão o eleitorado da (e de) direita, mostrando o que é geral e o que é particular, além das variações. É possível que aquilo que aparece como “unidade”, ser de direita, pode “esconder” outras coisas, como um eleitorado de centro que, ao não encontrar uma alternativa contra Lula da Silva, vinculou-se ao bolsonarismo. Quem quiser “tomar” parte deste eleitorado — seja o PT ou outro partido — precisará, antes, entendê-lo bem. Talvez seja possível sugerir que se trata de “eleitorados” e não de “eleitorado”. A diversidade tende a ser mais ampla do que se pensa.
Como a direita conseguiu, digamos assim, “formatar” um eleitorado, em grande parte radicalizado — portanto, fidelizado —, é um dos enigmas do pleito de 2022.
Tais eleitores são integrantes das classes abastadas e médias? Tudo indica que sim. Mas nem todos. É bem possível que lideranças evangélicas, num trabalho metódico e sistemático, tiveram um papel central na persuasão de eleitores que, em geral votando ao sabor das campanhas, decidiram acompanhar Bolsonaro, identificando-se fortemente com o presidente.
Porque tantos eleitores se “identificaram” com Bolsonaro, sentindo-se representados pelo presidente, é um dos “segredos” da disputa deste ano. A aliança entre o presidente e a imensa quantidade de votantes terá de ser esmiuçada, com seriedade e menos voltagem ideológica, a partir de agora. Os cientistas políticos responsáveis — abertos ao “novo” e às dificuldades de sua apreensão — têm um excelente material para exame.
A “identificação” sugere que um eleitorado de direita está amplamente formatado — e rebelado — e que, possivelmente, não mudará de opinião na próxima eleição presidencial. Há quem acredite que, dada a derrota e por não ter aderido, aos menos até agora, aos rogos golpistas dos eleitores de direita, Bolsonaro não se consolidará como líder dos eleitores radicalizados.
O espaço se abriria, assim, para um candidato de centro-direita, como os governadores Ronaldo Caiado (União Brasil), de Goiás, e Romeu Zema. O goiano e o mineiro têm mais perfis de estadistas e gestores do que Bolsonaro. Mas resta saber se o eleitorado de direita, que se tornou radical, vai acompanhá-los, deixando Bolsonaro ou um de seus apadrinhados, como Tarcísio de Freitas, de lado.
Ao menos do ponto de vista deste momento, os eleitores continuam cobrando um nome de direita, e radical, e não um nome de direita moderado. Mas pode mudar? Claro que sim. Dependendo da gestão de Lula da Silva, que está se impondo missões gigantescas — o que pode desgastá-lo rapidamente —, a direita virá com força total. Resta saber se com um candidato moderado, mais próximo do centro e agregador, ou se com um postulante radicalizado, ao estilo de Bolsonaro.
Voltando à análise de Romeu Zema: o gestor da terra de Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa não se faz uma pergunta crucial: como é que um candidato com tanto desgaste — como o atraso na aquisição da vacina contra a Covid-19 — pôde receber uma votação tão extraordinária? E mais: como conseguiu conquistar um eleitorado tão devotado e radicalizado? Há quem postule que tal eleitorado “delira”. Mas vale perguntar: é mesmo possível que quase 60 milhões de brasileiros “deliraram” ao apoiar Bolsonaro? É possível que tal “componente” deva ser levado em conta, mas não explica inteiramente o apoio tão maciço e convicto.
A “identidade” entre Bolsonaro e seu eleitorado — certamente, de direita, mas também, em parte, de centro (o centro não ficou apenas com Lula) —, um eleitorado apaixonado, quiçá fanatizado (daí a ideia de delírio, que, em si, não é incorreta; só é insuficiente como explicação do fenômeno), é um fenômeno que, insisto, deve galvanizar a atenção dos cientistas políticos (eu incluiria sociólogos e antropólogos) nos próximos anos.
Em 2026, se o eleitorado persistir radicalizado, à direita, a possibilidade de Bolsonaro voltar não é remota. Bolsonaro ou outro candidato de direita. Só resta saber se outro nome da direita vai ter tanta conexão com os eleitores que se apresentam, sem nenhum receio, como direitistas.
Ronaldo Caiado, dadas a decência pessoal e a firmeza ideológica, marcadas pelo realismo e pelo racionalismo — médico, é um homem da ciência —, talvez seja o candidato a presidente que mais pode atrair tanto o eleitorado da direita quanto o de centro.
Romeu Zema me parece “insosso”, com um discurso por demais tecnicista, no estilo de coach. Não parece ter sintoniza com os eleitores radicais.
Tarcísio de Freitas, eleito governador de São Paulo, o Estado-país, depende do jogo de Bolsonaro. Mas não tem pinta de político nacional. Pode ser “bom” para São Paulo, mas talvez não seja palatável para o Brasil. Porém, sua relativa moderação e o estilo “tocador de obra” podem agradar milhões de eleitores. Por enquanto, é “candidato” a substituto de Bolsonaro? No momento, tem uma grande missão pela frente: administrar um Estado, São Paulo, que, na prática, é um dos “países” mais ricos da América Latina. Administrar a terra dos poetas Mário de Andrade e Régis Bonvicino é o mesmo que administrar um país. Ou seja, não há “treino” melhor para quem planeja gerir o Brasil.