Chico Buarque é o esteta que o engajado escondeu mas não matou
22 junho 2023 às 10h38
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*Matéria originalmente publicada em 21 de setembro de 2014
Costuma-se dizer que a ditadura civil-militar foi benéfica a Chico Buarque de Holanda e, de fato, foi mesmo. As exigências e até a burrice dos censores foram úteis, de algum modo, para liberar as forças criativas do compositor, que se tornou mais sutil e refinado, como os escritores russos que escreveram suas melhores obras sob o tacão da política autoritária dos czares. O fim da ditadura foi igualmente favorável a Chico Buarque, pois o libertou da esquerda (em parte, pelo menos). Sim, porque, sequestrado pela esquerda, um sequestro relativamente consentido, pois era uma parceria que interessava a ambos, o artista se tornou uma espécie de seu porta-voz político, que usava sua música para estocar os militares — para, pelo menos, arrancar casquinhas. Lembro-me que, quando saía um disco do compositor-cantor, dizia-se: “Vamos ver como Chico fustigou os militares” (“milicos” – eis a palavra mais precisa). Os fãs, tanto os esquerdistas, a maioria, quanto os liberais, que talvez entendessem melhor a arte mais ampla do esteta exemplar, não apenas do esteta engajado, buscavam nas linhas e nas entrelinhas o significado das críticas. Cada um arrancava sua própria interpretação, mas a conclusão era a mesma: “Esse Chico é esperto e, mais uma vez, com habilidade, ‘ludibriou’ e ‘acabou’ com a ditadura”. E esperava-se o próximo petardo do artista-bomba. Com o término da ditadura, sem (quase) nada para combater, o filho de Sérgio Buarque de Holanda (o historiador preferia Holanda a Hollanda) ganhou sua alforria artística.
No livro “Chico Buarque” (Editora Publifolha, 173 páginas, da coleção Folha Explica), o jornalista Fernando de Barros e Silva faz uma notável análise da música e da poética do compositor. Fernando de Barros nota que, mesmo na ditadura, combatendo os excessos dos governos militares, Chico preservou-se como artista mais complexo. Enquanto a esquerda o percebia apenas como um porta-voz, quase um inocente-útil, Chico era muito mais do que isso. O jornalista também faz sua discurseira ideológica contra a ditadura, certamente para se mostrar igualmente combatente, mas no geral contribui para libertar, não inteiramente, porque não é possível dissociar a criação de Chico do contexto em que foi produzida, o artista do jugo da esquerda. Chico “mantinha uma relação complexa e desconfiada com a cultura de esquerda que dominou o cenário cultural até 68”, nota Fernando de Barros.
No momento em que as músicas eram executadas pela primeira vez, no calor da batalha política, raramente se percebia o que Fernando de Barros chama de “a percepção das nuances e dos detalhes, o garimpo paciente das palavras, a atenção aos nós inextricáveis que amarram o abismo subjetivo de cada um aos movimentos coletivos, a recusa a conferir um sentido programático ao que faz, mesmo quando empurrado a isso, sobretudo nos anos 70”. José Miguel Wisnik e Guilherme Wisnik escreveram, antes de Fernando de Barros: “As canções de Chico Buarque vêm pontuando décadas de história, mas de um modo diferente daquele que se atribui a ele. Nelas, a grande história vem sempre repassada pelas pequenas experiências, essas por sua vez reveladoras da vida coletiva de um modo inesperado”.
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Não se quer, neste texto, nem é a pretensão de Fernando de Barros, desconhecer a ligação de Chico com a esquerda (ele nunca foi filiado ao Partido Comunista ou ao PT; “eu sempre me vi integrado a movimentos mais amplos, de mudanças amplas, não apenas partidárias”), e até sua relativa subordinação, mas evidenciar a autonomia do artista, por intermédio de um rigor (e um vigor) raro na música brasileira. Chico era mesmo de esquerda (e continua sendo), mas de uma esquerda libertária e bem pessoal. Talvez se explicitasse suas dúvidas com mais clareza, em pleno processo de combate à ditadura, a própria esquerda, que exige a hegemonia do pensamento único (a sua própria filosofia), que critica nos outros, o execrasse. Os militantes de esquerda diziam que Caetano Veloso era “alienado”. Pura incompreensão… estética e, mesmo, política.
Rigor formal do pai
Fernando de Barros rastreia a formação de Chico Buarque, que começou em casa. Ele cresceu ouvindo Noel Rosa, Ataulfo Alves, Dorival Caymmi, Gershwin, Cole Porter e músicas italianas e francesas (paixões do pai). “Chico teria o privilégio de ouvir em primeira mão as canções da bossa nova que Vinicius [de Moraes] mostrava nas visitas que fazia a seu pai”, conta Fernando de Barros. “A minha tentativa de aproximação com meu pai foi através da literatura. Ele vivia fechado na biblioteca, e eu, que tinha medo de penetrar naquele território, comecei a ler algumas coisas. Ele me indicava desde clássicos, como Flaubert, até Céline, Camus e Sartre. Li, ainda em francês, Kafka, Dostoiévski, Tolstói e uma boa dose de literatura russa”, contou Chico numa entrevista à “Folha de S. Paulo”. “Existe um rigor formal na escrita de meu pai que procuro não desmerecer, quando faço literatura”, diz Chico. Dar prosseguimento ao trabalho do pai, na música ou na literatura, exigia mais do que boas intenções. Exigia estudo, pesquisa. Chico buscou esse caminho e só mais recentemente vem sendo estudado de forma mais ampla, notando-se que, por trás do artista que só parecia (para alguns) engajado, há um autor refinado, capaz de iludir (e seduzir) tanto seus detratores, os governos militares e seus apaniguados, quanto seus fãs de esquerda (fãs que, aliás, não estavam apenas na esquerda, o que atesta a vitalidade, a complexidade e a universalidade de sua música).
Chico ficou conhecido, em 1965, com “Pedro Pedreiro”. Percebeu-se, de imediato, a crítica política, pois a ditadura completava um ano, mas, como nota Fernando de Barros, havia muito mais: “O gênio precoce [Chico tinha 21 anos] já havia se manifestado (…) em ‘Pedro Pedreiro’, canção de 60 versos, na qual intervenção social e elaboração formal se resolviam num patamar elevado. (…) A repetição do verbo ‘esperar’, usado mais de 40 vezes, 36 delas no gerúndio (esperando), criava no corpo da canção o sentimento de expectativa sempre renovada e adiada, frustração que culmina na sugestão onomatopaica do barulho do trem — ‘que já vem, que já vem, que já vem’, sem nunca chegar”. Fernando de Barros compara “Pedro Pedreiro” a “Construção”, de 1971.
Como quase todo artista, Chico começou imitando, ou seguindo, a música de João Gilberto e Tom Jobim (que o mandou estudar música), além de Vinicius de Moraes. Ele buscou equacionar, nas palavras de Fernando de Barros, samba e bossa nova. “Havia nele tanto Tom Jobim quanto Noel [Rosa]. Além, é claro, do desencanto pelo revés de 64.”
Em 1966, Chico explode com “A Banda”, que surgia como mais um ataque à ditadura — tudo, aliás, que saísse da lavra do compositor, naquele tempo, era considerado como crítica ao poder, o dos militares, o mais visível. Num depoimento à sua biógrafa Regina Zappa, Chico faz seu próprio reparo: “Quando conheci Nara, em 65, 66, a gente achava que aquilo tudo estava ficando cansativo, a moda das canções de protesto me incomodava. Era bonitinho ser contra o governo. Parecia a burguesia brincando e dava a impressão de ser um pouco oportunista. Então fiz ‘A Banda’ e dei para a Nara gravar. Foi uma coisa meio proposital, tipo um chega”. “A Banda” ganhou o 2º Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, em 1966, ao lado de “Disparada”, de Geraldo Vandré e Théo Barros.
Em 1968, Chico e Tom Jobim, com “Sabiá”, vencem o 3º Festival Internacional da Canção, da TV Globo. Foram vaiados. O público preferia “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores” (“Caminhando”), de Geraldo Vandré, que ficou em segundo lugar. Caetano Veloso, eterno rival de Chico, também foi vaiado, com “É Proibido Proibir”. No mesmo ano, sob o AI-5, Chico é detido, mas não fica preso. Vai para a Itália, onde não se deu bem, e volta logo depois. Perseguido mais de perto, torna-se o “compositor de protesto número 1 do país”. Daí que, como disse em 1979, Chico era obrigado a se “desdefinir”, pois havia se tornado “refém da caricatura”.
Em 1971, lança a belíssima e elaborada “Construção”. “Com ela”, anota Fernando de Barros, “Chico finalmente se veria livre do estigma de ser o eterno autor de ‘A Banda’. Mais do que o sucesso da nova obra — estrondoso —, o que lhe importou foi a renovação estética que ela representava. (…) Muito já se escreveu sobre a genialidade da canção (…) de 41 versos terminados todos em proparoxítonas. Em ‘Construção’, ‘Pedro Pedreiro’ é como que esmagado pelo trem que eternamente esperava. Desaparecem a atmosfera algo ingênua e a melodia ainda impregnada de uma esperança que a letra dos anos 60 projetava no horizonte. Surge em seu lugar um motivo melódico recorrente, como a indicar um tempo presente sufocado e circular, que se auto consome no liquidificador de imagens que vão sendo permutadas e embaralhadas até o transtorno total de seu sentido. O arranjo de Rogério Duprat parte do violão para ir instalando a cada estrofe uma nova camada de sonoridades, como andaimes, até chegar à balbúrdia sinfônica e à entropia insuportável no final”. Fernando de Barros avalia que, “a partir de ‘Construção’, a obra de Chico ganha uma dicção nova, amadurecida, mais corrosiva e muitas vezes sarcástica”.
Com ‘Meus Caros Amigos’, disco de 1976, e “Chico Buarque”, de 1978, no período da distensão do presidente Ernesto Geisel, o artista está mais otimista, mas não o otimista panglossiano. “Bye Bye, Brasil”, de 1979, na avaliação de Fernando de Barros, faz um inventário do colapso de um país que abandona a si mesmo. Em 1984, empolgado com a campanha pelas (eleições) Diretas, Chico compõe “Vai Passar” e “Pelas Tabelas”. Chico define a última música: “É um sujeito procurando uma mulher, apaixonado, no meio da manifestação pelas Diretas. É essa confusão do individual com o coletivo, apontando muito para o individual naquele momento coletivo”. A interpretação de Fernando de Barros: “‘Pelas Tabelas’ é um bom exemplo do alcance das canções de Chico. Motivada por um evento histórico bem determinado — a campanha pelas Diretas —, ela não só ilumina aspectos nada evidentes e contraditórios daquele momento, como lhe sobreviveu, parecendo, até mais atual hoje do que quando foi feita. A sensibilidade social que a música fisga no ar nos é totalmente contemporânea”.
O resgate do artista lírico
Fernando de Barros detecta uma mudança de rumo na criação de Chico Buarque a partir e 1980. “Já nos discos ‘Vida’ (1980) e ‘Almanaque’ (1981) começa a ganhar corpo a expressão variada de um sentimento de desilusão, que irá se traduzir ao longo da década num distanciamento maior em relação à referência política, numa ironia mais aguda que não poupa nada nem ninguém — muito menos a si mesmo — e, finalmente e talvez mais importante, numa expansão do lirismo em sua obra — lirismo que lhe é intrínseco desde o início, mas que irá assumir nova força e dicção diferenciada no compositor que se vê às voltas com a idade madura.”
Na análise de Fernando de Barros, sempre atento, “o que parece diferenciá-lo [o lirismo] das canções de amor de períodos anteriores é o registro mais introspectivo e ensimesmado, sua vocação para o monólogo, no qual a ênfase se desloca da exposição do conflito com o objeto cantado para uma espécie de reflexão melancólica e solitária em torno de sua ausência. (…) Mas, também considerada no aspecto formal, a música de Chico vai se tornando mais trabalhada e complexa de meados dos anos 80 em diante. Isso aparece já em ‘Francisco’ e, de forma mais nítida, no disco ‘Chico Buarque’, de 1989. Talvez se deva falar numa influência mais decisiva de Tom Jobim em sua obra a partir dessa data, ou mesmo numa espécie de ‘jobinização’ de muitas de suas músicas, o que será confirmado e coroado na homenagem ao ‘maestro soberano’ em ‘Paratodos’ (1993). ‘Foi Antônio Brasileiro/Quem soprou toda esta toada’, revela Chico na canção em que explicita sua ‘árvore genealógica musical’, inserindo-se numa tradição brasileira. (…) ‘Paratodos’ representa um dos momentos mais fortes na trajetória de Chico, algo como um reencontro dele com a cultura nacional-popular, com a sua própria obra e com as ilusões perdidas da juventude. Mas é muito mais de uma celebração, de uma volta por cima, do que de saudosismo que se trata”.
Seguindo a psicanálise, Fernando de Barros nota que, “se a lírica introspectiva dos anos 80 pode ser tomada também como o trabalho paciente de elaboração de um luto, ‘Paratodos’ seria a expressão da sua cura, ou da superação da dor e do vazio provocados pelo objeto perdido — com o qual o compositor pode enfim se reconciliar em novos termos. Como nos ensina a psicanálise, é preciso ‘matar o morto’ para que ele possa reviver dentro de nós. A impressão é de que o Brasil revive através da música em ‘Paratodos’”.
O crítico Roberto Schwarz, um dos mais perspicazes leitores da obra literária de Chico Buarque, escreve: “A disposição de continuar igual em circunstâncias impossíveis é a forte metáfora que Chico Buarque inventou para o Brasil contemporâneo”.
Sem a ditadura, portanto sem o aplauso agressivo da esquerda, que controlava os cadernos culturais, além dos políticos, Chico parece ter se “apequenado”. Não tendo a quem atacar, teria “se perdido” como artista. Não é o que Fernando de Barros mostra. Descolado do combate a um inimigo imenso, poderoso e identificável, Chico sofisticou-se ainda mais e, talvez por isso, tenha se tornado um artista para poucos. Embora seja um artista “paratodos”, não apenas para o público de esquerda, aparenta ser um artista “parapoucos”. Mais artística, e menos política, a intervenção de Chico, paradoxalmente, cresceu, mas não é notada. Ou é menos percebida. Talvez por isso, por ser menos compreendido, embora esteja tão grande quanto antes, quem sabe até maior, porque mais livre para criar, Chico tenha se voltado para a prosa literária, lugar também “parapoucos”.
O contraponto do escritor
Sérgio Buarque de Holanda começou a vida como crítico literário (ou uma espécie diferenciada de jornalista), não como historiador (ele entrevistou Thomas Mann, na Alemanha, na década de 20). E, mesmo como historiador, era um prosador — filho, digamos assim, da arte modernista, que entendeu tão bem. Lia tudo e comentava quase tudo. Chico Buarque seguia os passos do pai. “Gostava da ideia de ser escritor. Tinha a impressão de que iria ser uma coisa tipo jornalista ou, sei lá, uma espécie de cronista, um Rubem Braga”, disse Chico numa entrevista à revista “Playboy”, em 1979.
Chico escrevia, o pai lia e dizia: “Vai ler mais, continua escrevendo”. Em 1965, Chico publicou “Ulisses”, seu primeiro conto, no “Suplemento Literário” de “O Estado de S. Paulo”. Era “fraquinho”, admitiu Chico. Entre 1963 e 64, escreveu o poema “A Bordo do Rui Barbosa”. Em 1974, publica um trabalho mais elaborado — “Fazenda Modelo”, tida “como uma novela pecuária” (rural, talvez seja mais preciso).
Como registra Fernando de Barros, “o escritor que surge em 1991 com ‘Estorvo’ é bastante complexo e surpreendente — e sua obra será uma espécie de contraponto áspero e corrosivo do compositor que, queira ou não, está conectado a uma tradição popular e cultural que transmite algo de maneira efetiva. A forma literária irá permitir a Chico uma figuração mais aguda e despida de lirismos da experiência da desagregação social — assunto recorrente no autor desde os anos 80. Em pouco mais de dez anos, com o lançamento de ‘Benjamin’ (1995) e ‘Budapeste’ (2003), sua obra representa uma novidade e se inclui entre as mais importantes da literatura brasileira atual”.
“Se o músico, cada vez mais rigoroso, vai encontrar nos anos 90 acolhida e consolo na lírica jobiniana”, pontua Fernando de Barros, “o escritor será a sua contrapartida, maestro soberano de uma escrita intransigente e muito ruminada, que aponta para um universo abafado, sem conciliação possível. Chico sustenta sua escrita, num limite de tensão alto, o que provoca por si só, aquém daquilo que narra, um certo desconforto, como se estivesse a exigir do leitor um espírito igualmente tenso. Seus personagens são pessoas igualmente pouco à vontade neste mundo”.
A literatura de Chico, assim como a música, cobra, agora, uma percepção maior do leitor. O disco “As Cidades”, de 1998, “não tem sucessos evidentes, canções que colam de imediato na memória. É preciso ouvir mais de uma vez, transpor barreiras, redobrar a atenção para começar a gostar desse disco. Ele não se oferece, não convida ao regozijo instantâneo, como faziam por exemplo as músicas do próprio Chico nos anos 70. O prazer estético aqui está mediado pela necessidade de um esforço, de uma elaboração da sensibilidade. Estamos diante de uma ‘forma difícil’ buscada por um artista que, mesmo consagrado, se põe claramente na contramão dos tempos atuais”.
Para entender “Estorvo”, Fernando de Barros busca a interpretação de Roberto Schwarz, um dos mais argutos críticos patropis (com algumas escorregadas, é certo, especialmente na crítica a Caetano Veloso, o de “Verdade Tropical”): “A tônica do romance não está no antagonismo, mas na fluidez entre as categorias sociais — estaríamos nos tornando uma sociedade sem classes, sob o signo da delinquência? —, o que não deixa de assinalar um momento nacional”. “Em ‘Benjamin’”, assinala Fernando de Barros, “o que prevalece é um tempo circular ditado pela imobilidade, tradução do estado mineral a que está condenado o protagonista. (…) Sobretudo em seus dois primeiros romances, a literatura de Chico fala de um mundo impedido e sem escapes, e de um presente aprisionado pelo peso de um passado que não pode redimir (‘Benjamin’) ou decifrar (‘Estorvo’). Com ‘Budapeste’, no entanto, há uma avanço não só do domínio do escritor sobre o que narra, mas também da ironia, que deixa de ser circunstancial para assumir função crítica essencial à economia do romance. (…) ‘Budapeste’ talvez seja o grande romance brasileiro de uma época em que o cinismo se tornou o esperanto da cultural mundial”.
A permanência do universal
O livro de Fernando de Barros, em formato de bolso, é uma das melhores, senão a melhor, introdução à obra multifacetada de Chico Buarque. Se não é a primeira a tentar arrancar Chico Buarque do domínio exclusivo da pecha de “artista de esquerda”, pelo menos tem o propósito firme de mostrar que a sobrevivência do compositor depende mais da qualidade estética de sua obra do que dos ataques, sutis ou abertos, à ditadura — que passou. Chico “ficou”, dados a prevalência da qualidade de sua obra e um indicativo de que a crítica à circunstância, à ditadura, era apenas um matiz de sua obra musical.
A música de Chico não é apenas o registro das “maldades” da ditadura. É, também, o registro estético, depuradíssimo, de um tempo, do tempo do homem, o tempo universal. Chico fala para o sempre, não só para o (e do) passado. Chico mudou, guardando o que tinha de bom, e exige um ouvinte novo, que tenha superado o rancor da ditadura. Eis a sua grandeza, que Fernando de Barros captura muito bem. Seu livro é uma grande homenagem à arte de Chico – que agora completa 70 anos.
Lorenzo Mammi diz que a música de Tom Jobim “é uma promessa que o Brasil fez ao mundo, e ainda não cumpriu”. Fernando de Barros acrescenta: “Chico Buarque é o herdeiro dessa esperança — ou dessa ‘promessa de felicidade’ —, de cuja frustração sua obra é também a melhor tradução — retrato em branco e preto”.
Em “Raízes do Brasil”, no início, Sérgio Buarque pergunta: por que “somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”?. A resposta de Chico, no final da música “Assentamento”: “Amplidão, nação, sertão sem fim”. Fernando de Barros termina o livro muito bem: “O ponto de fuga da pergunta é o mesmo que a canção projeta no infinito — a casa do Oscar [Niemeyer], o Brasil ficou suspenso no ar, o ‘país da delicadeza perdida’, e que no entanto ainda reverbera em cada detalhe dessa obra que comove e ilumina”.
Menos cético do que Fernando de Barros, acrescento: já deu certo um país que gerou Machado de Assis e Guimarães Rosa, e até um esquerdista inflexível e sensível (um paradoxo) como Graciliano Ramos, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda; Clarice Lispector e Lygia Fagundes Teles; Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto; Noel Rosa, Guiomar Novaes, Bidu Sayão, Villa-Lobos Ataulfo Alves, Cartola, João Gilberto, Tom Jobim e Chico Buarque, acrescentando Caetano Veloso (ótimo, mas sempre desconfiado do próprio talento, daí a frescura ambulante, da qual Chico escapa). Por que pensar num país só do ponto de vista político? E por que visualizar na política o pior dos mundos?