Nenhum jornalista brasileiro conhece tão bem os meandros da Organização das Nações Unidas (ONU) quanto Jamil Chade. Desde 2000, quando deixou o País e seguiu para a Suíça com o objetivo de fazer mestrado em Relações Internacionais na Universidade de Genebra, ele se tornou referência na cobertura da entidade, o que começou a fazer como freelancer do jornal O Estado de S. Paulo.

Chade é também autor de vários livros: O Mundo Não é Plano (Editora Virgílio, 2010); Rousseff – A História de Uma Família Búlgara Marcada por Um Abandono, o Comunismo e a Presidência do Brasil, em parceria com Momchil Indjov (Virgiliae, 2011); A Copa como Ela é: A História de Dez Anos de Preparação Para a Copa de 2014 (Companhia das Letras, 2014); Política, Propina e Futebol (Objetiva, 2015); 10 Histórias Para Tentar Entender um Mundo Caótico, em parceria com Ruth Manus (Sextante, 2020); e Luto: Reflexões Sobre a Reinvenção do Futuro (Contracorrente, 2022).

Como todo escritor, Chade é também um ótimo contador de histórias. Em Goiás, quando alguém lança uma história em uma roda de conversa, dá-se a ela o nome de “causo” – uma corruptela da palavra “caso”, a partir da pronúncia caipira, das pessoas do universo rural da região central do Brasil, principalmente.

Causos são como fábulas, percorrem roteiros que desaguam quase sempre em boas reflexões. Participando da 3ª edição do Festival Literário Internacional de Itabira (Flitabira) na semana passada, o correspondente internacional contou bons causos que expõem a fragilidade da ONU diante da cena do mundo contemporâneo. Um trecho de uma mesa-redonda com sua presença revela esse quadro.

A discussão sobre o poder (ou a falta de) da entidade ficou mais ressaltada depois do cala-boca sofrido por António Guterres, que, em sessão da ONU, disse, depois de condenar os atos terroristas de 7 de outubro, que “o ataque do Hamas não aconteceu no vácuo”. A declaração fez Israel e Estados Unidos quase rasgarem as vestes no salão, o que mostrou os limites do poder da entidade, principalmente diante das superpotências. “Ele [Guterres] só falou isso porque já está em seu segundo mandato, mas sabe que [o mandato] acabou ali”, analisou.

“Essa impotência não é de ontem. Tem uma espécie de piada na ONU que diz que um prefeito de uma cidade de 10 mil habitantes tem mais poder do que o secretário-geral”. Para exemplificar, Chade soltou um de seus causos. Contou sobre uma viagem que fez pela África com Ban Ki-Moon, que foi secretário-geral da ONU de 2007 a 2017. Em uma das paradas, Jamil pediu ao sul-coreano que antecipasse para ele a versão do discurso que pronunciaria, obviamente dando-lhe a palavra de que não divulgaria nada antes. Ban Ki-Moon se voltou para o jornalista e ficou curioso para entender o porquê do interesse em suas palavras: “Meus discursos são água com água. E cada vez que eu vou colocar sal, alguém vem e me dá um tapa na mão”, respondeu o número 1 da ONU. Guterres não foi o primeiro a peitar os interesses geopolíticos estadunidenses em meio a um conflito desigual. Durante a guerra do Iraque, o então secretário-geral Kofi Annan uma vez declarou que a operação comandada pelos Estados Unidos no país árabe era “ilegal”. A partir de então, quase que imediatamente passou a ser alvo da hostilidade de Washington. Vieram à tona denúncias de corrupção em família – no caso, de seu filho. Chade conta que Annan ficou, mais do que desnorteado, abalado ao ponto de ficar totalmente afônico. “O mais incrível: ninguém percebeu que o secretário-geral da ONU estava sem voz”, contou.