Caso Vinícius Jr. furou a bolha do racismo na Espanha, diz jornalista Thiago Arantes

28 maio 2023 às 00h00

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O fim de semana no futebol brasileiro foi de uma ação sem precedentes na história da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Sob o comando de Ednaldo Rodrigues – o primeiro presidente não branco da entidade, criada a partir da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), em 1979 –, todos os jogos das principais divisões tiveram atos contra o racismo.
É o reflexo de um ataque que ocorreu do outro lado do Atlântico, contra um jogador brasileiro. Na verdade, o melhor jogador brasileiro em atividade no momento: Vinícius Júnior, de 22 anos, foi mais uma vez vítima de gritos e gestos racistas no domingo, 21, dessa vez por pelo menos centenas de torcedores do Valencia, no Estádio de Mestalla.
A repercussão no Brasil foi imensa e a impressão que se teve foi de que na Espanha também teria sido. O jornalista Thiago Arantes, goianiense que vive e trabalha em Barcelona há dez anos, deu mais detalhes sobre como foi a semana passada depois do incidente e afirmou, taxativo: é, sem dúvida, o caso de racismo de maior alcance no esporte espanhol. “Até então, tinha sido o caso de Samuel Eto’o, craque do Barcelona, ainda em 2006, jogando contra o Zaragoza”, lembra.
Naquela partida, na casa do adversário, ao cobrar um escanteio, torcedores começam a fazer ruídos que lembravam os emitidos por macacos. Imediatamente, o camaronês interrompeu sua ação e ameaçou sair de campo. Foi contido pelo companheiro Ronaldinho Gaúcho, então o melhor jogador do mundo e também negro. “Mas, mesmo assim, Eto’o continuava relutante, até ser convencido por Ewerthon [outro jogador brasileiro negro, e do time adversário], que disse que sairia de campo junto com ele se as ofensas não cessassem”, conta Thiago. Eto’o se acalmou e o público parou com os ruídos. O jogo seguiu, a repercussão depois foi péssima, mas pouca coisa mudou.
Em 2014, contra o Villarreal, Daniel Alves, então ídolo do Barcelona, foi alvo de uma banana jogada por um torcedor. O lateral pegou a fruta, a descascou e a comeu. O fato (e a reação, também) gerou muita repercussão à época, mas as redes sociais ainda não tinham o poder que têm hoje, fato que é destacado por Thiago Arantes no caso de Vinícius Júnior.
O Jornal Opção conversou com Thiago para tentar entender, de forma mais detalhada, aqui com um relato em tópicos, como ele desdobrou o caso de ataques contra o brasileiro. Veja a seguir.

Insultos racistas e provocações de jogo, a falsa simetria
Aqui na Espanha, como também no Brasil alguns justificaram, tem um argumento de que não haveria racismo, porque não ocorreria nada contra outros jogadores negros e que Vinícius Júnior é alguém que provoca adversários e torcedores rivais. Só que isso pode ser punido pelas regras da partida, é óbvio. Não há uma medida igual entre “jogador ser chato em campo” e “ser racista contra esse jogador”. O segundo ponto é uma falácia: houve sim, vários casos de racismo contra outros jogadores. Um exemplo foi de um torcedor do Valladolid, que cometeu racismo contra Vinícius e, dias depois, fez o mesmo contra o nigeriano Samu Chukwueze, jogador do Villarreal.
A razão da mudança de discurso de La Liga
Isso tem dois pontos. Pela primeira vez, a repercussão cresceu demais, ao ponto de o presidente da República e mais quatro ministros brasileiros repudiarem o caso no mesmo dia do ocorrido. Mas tem também uma questão financeira: se La Liga começar a perder patrocinadores, prestígio, audiência, a perder jogadores por causa de casos de racismo, o negócio vai decair. Seis anos atrás, a liga espanhola podia falar que era a maior do mundo, com Cristiano Ronaldo, Messi, Neymar e Suárez. Hoje, não mais. Vinícius Júnior é o grande jogador na Espanha, se pensarmos que Benzema e Lewandowski estão no fim de suas carreiras. Vini é o futuro da liga, é o mais promissor. Perder um jogador assim, como negócio, é terrível. Então, tem a pressão popular, mas tem também a questão de pressão econômica.
“País racista” / “País de racistas”
Em seus argumentos, Vinicius Júnior não diz que a Espanha é um “país de racistas”, mas fala, sim, que é um “país racista”. Isso não quer dizer que seja um país com 100% de seus habitantes sendo racistas. Significa um país onde a engrenagem social funciona de forma diferente para pessoas de origens diferentes. É uma descrição muito precisa da sociedade espanhola. Ele fez o debate sair da bolha do futebol. Falaram muita bobagem na discussão do caso aqui. Tentaram rebater justificando que o Brasil é um país racista. Ora, ninguém precisa falar isso para nós, brasileiros, a gente sabe que o Brasil é um país racista, não há novidade nisso. Mas a sensação é de que muitos ainda não conseguiram reconhecer que há um problema aqui para, então, começar a tratá-lo.
Solidariedade até de rivais
As reações dos jogadores foram de muito apoio, talvez o caso que tenha tido apoio mais imediato. Um bom termômetro foi a manifestação do Raphinha, que é atacante do Barcelona, e que mostrou uma camiseta com os escritos “Estamos juntos, Vinícius”. É algo difícil de ver, solidariedade entre jogadores dos maiores rivais aqui. E o interessante é que, na seleção brasileira, Raphinha e Vinícius nem são tão próximos, não são aqueles que andam juntos e fazem parte do mesmo grupo. No tumulto em Valencia, o atacante Lucas Vázquez, um jogador branco, era o mais indignado do Real Madrid; e o goleiro Thibaut Courtois chegou a falar que, se acontecer de novo, vai sair de campo junto com Vinícius. Isso mostra o quanto esse tipo de ocorrência tem afetado o grupo de jogadores do Real Madrid.”
Clubismo contamina debate
A rivalidade fez com que o debate sobre racismo ficasse contaminado durante muito tempo. Muitos torcedores do Barcelona negaram por muito tempo que o que ocorria com Vinícius Júnior era racismo, usando esse argumento de que ele é “chato”, que ele “provoca”. Entre os jornalistas, tanto de Madrid como de Barcelona, muitos querem colocar os clubes em meio a argumentos sobre o racismo. Quem resumiu bem isso foi Xavi [treinador do Barcelona], ao responder um repórter que havia dito que as palavras do treinador estavam agradando o “madridismo”, por criticar o racismo. Xavi respondeu que não era nada sobre Vini Jr. ser jogador do Real Madrid, mas que antes de ele ser isso, é uma pessoa. Talvez tenha sido a manifestação mais lúcida e mais válida de alguém para dissociar o racismo da questão clubística.
Espanhol desconhece o próprio racismo
Morando há dez anos na Espanha, o que percebo é que não há diálogo sobre racismo por aqui. Existem algumas expressões, ou maneiras de pensar, que são evidentemente racistas, mas como as pessoas vivem e convivem apenas entre elas, brancas europeias, não tem ninguém para lhes falar que tal atitude ou expressão é racista. É uma situação muito complicada, porque a pessoa simplesmente não entende quando você fala para ela que está sendo racista, porque ninguém nunca falou aquilo para ela. É diferente do Brasil, onde as estruturas racistas estão bem identificadas. O racismo existe no Brasil e é mais perigoso do que aqui, porque se morre por conta da cor da pele – na Espanha, isso ocorre em grau muito menor. Aqui a questão é educativa: as pessoas nunca ouviram de outra que tal coisa é racismo. Não diria que é um racismo “involuntário”, mas diria que talvez muitas vezes seja inconsciente. Aqui o racismo anda de mãos dadas com a xenofobia, que é outro componente. A discriminação vem também pelo país de origem.
Vini Jr. tem condições de seguir na Espanha?
Apesar de ter somente 22 anos, o Vinícius tem mostrado uma força e uma personalidade muito fortes. No jogo contra o Valencia, quando ele aponta para o torcedor que o está insultando, naquele momento ele simbolicamente pega a bandeira antirrascista e levanta. Ele se torna um símbolo. Agora ele tem de fazer uma escolha: ou ficar na Espanha e tentar lutar contra tudo isso aqui; ou aceitar uma proposta para outro clube que pudesse comprá-lo. A dúvida: ele tem condições de continuar jogando aqui? Eu digo que, pela força que tem mostrado e pelo tamanho que ele ganhou depois desse caso, com a repercussão que teve agora, eu diria que tem, sim. Até porque o Real Madrid, que até então não tinha dado um apoio condizente com a gravidade do que estava acontecendo, passou a bancar isso. A partir de quando o clube e a torcida passam a dar esse suporte ao jogador, bem como também as estruturas do futebol espanhol percebem que isso não pode continuar dessa forma, tenho a sensação de que Vinícius se fortalece para se tornar o principal jogador do campeonato espanhol nas próximas temporadas.
O segredo da grande repercussão desta vez
O que mudou a situação de Vinícius por aqui foi a onda de apoio que partiu do Brasil. Digo isso porque ele já tinha sofrido esse tipo de situação em nove estádios diferentes aqui. Na noite de domingo, aqui na Espanha, as manchetes eram praticamente as mesmas de sempre quando ocorre algo parecido por aqui: “Vinícius envolvido em polêmica”, “Confusão com Vinícius Júnior”, coisas assim. Estavam usando palavras que não eram as palavras certas. A partir do momento em que jogadores, ministros e até o presidente da República brasileiro se manifestam, a crise tomam outra proporção, muito maior. E creio que o que deu essa amplitude tamanha para o caso foi a junção de duas coisas: o fato de Vinícius ter apontado o dedo para o racista e os brasileiros terem apontado o dedo para a situação.