É preciso repensar muita coisa e adequar o modelo aos novos tempos, que não permitem grosserias e preconceitos disfarçados de “irreverência” ao microfone

Goiás faz parte da periferia do País. Por mais que, especialmente no século 21, o Estado tenha se tornado uma potência do agronegócio e alcançado um relativo desenvolvimento industrial, há ainda um sentimento conservador muito forte, como, de resto em todo o Centro-Oeste. Paira no ar – e, claro, nas relações e nos discursos – uma necessidade em ser ou parecer rústico, valente, “sem frescuras”.

Dessa forma, não surpreende ver situações que remetem ao “rústico” gerarem, em muitos, certa identificação e até uma ponta de orgulho. Isso explica, em parte, a grande votação que Jair Bolsonaro recebeu dos goianos, como a dizer “ele é como nós!”.

A imprensa goiana, obviamente, faz parte desse meio, age e reage dentro desse contexto. Muito longe de querer generalizar – existem ótimos profissionais na área –, a chamada “crônica esportiva” (expressão em desuso, mas com a qual se identifica essa ala do jornalismo) em Goiás entra nesse personagem e compra esse estereótipo, segundo o qual vale bater a mão na mesa, gritar em vez de debater, fazer piadas de duplo sentido no microfone e trocar isenção por parceria.

Essa “rusticidade” presente na atmosfera afeta o comportamento, obviamente, também da imprensa esportiva local e faz com que alguns eventualmente cometam abusos, e que os abusos cometidos sejam, por sua vez, vistos como “brincadeiras” ou “zoações”. Os episódios mais polêmicos são minimizados e quem for mais persistente na crítica é um “mimizento”. Vale, por fim, lamentar que “o politicamente correto deixou o mundo chato demais”.

É dessa forma, com essa visão que, em pleno 2021, um jogador de futebol negro usando black power (algo tão comum na paisagem dos gramados na década de 70) passa a ser visto como um ser “exótico” e “que dá margem” para ser criticado pela própria imagem e não pelo futebol que pratica. Foi assim que dois radialistas, Romes Xavier e Vinícius Silva, ao debochar do cabelo – “imundo”, “pesado”, “bandeira de feijão” – do atleta Celsinho, do Londrina, em um jogo da Série B contra o Goiás, em Goiânia, ganharam um processo na Justiça. Não faltou quem os defendesse e ainda os defenda, porque… porque “foi algo sem maldade”, “foi só um momento de descontração”, “uma brincadeira irreverente”, ou pior, “o cabelo é assim mesmo, queria que eles falassem o quê?”.

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Como a imprensa esportiva em Goiás é um ambiente em que todos se conhecem e quem não trabalha hoje com fulano amanhã dividirá cabine com ele, a imensa maioria dos comunicadores não se pronunciaram sobre o fato, ocorrido em julho. A dupla foi indiciada por injúria racial.

Da mesma forma, o silêncio e a minimização prevaleceram como reações ao episódio envolvendo Adson Batista, presidente do Atlético Clube Goianiense, na quinta-feira, 9. Logo após a partida da equipe contra o Flamengo – que já havia liberado para férias todo o time titular e os principais reservas, como Michael, o que não tira o mérito da vitória dos rubro-negros locais por 2 a 0 –, Adson concedia uma entrevista coletiva rotineira, rodeado de repórteres. Tudo bem, tudo normal até aí. Foi quando Juliano Moreira, da Rádio BandNews, lhe fez uma pergunta:

– Presidente, Marcelo Cabo [treinador do Atlético] atingiu todos os objetivos?

Antes que o profissional da imprensa terminasse de perguntar, o presidente teve uma atitude tão inusitada quanto desrespeitosa, para dizer o mínimo: puxou para baixo a máscara de Juliano e lhe disse: “Nós somos Bolsonaro, né? Para com esse negócio, tira a máscara.”

A situação, esdrúxula, ganhou repercussão nacional, destacado pelos principais portais esportivos e também pela mídia além do esporte, em veículos como UOL, Terra, Extra, Estado de Minas, Metrópoles. Afinal, não é todo dia que alguém “invade” o rosto de outra pessoa para retirar a máscara usando um argumento político para tanto.

Em Goiás, principalmente nas rádios com programação esportiva, o caso foi abafado. Nas redes sociais, colegas de profissão das emissoras locais apareceram não para defender Juliano Moreira, mas para fazer o desagravo da atitude de Adson, justificando que ambos são “amigos”.

Um dos poucos a se posicionarem de forma crítica foi Wendell Pasquetto, da Sagres AM, que escreveu, no Twitter: “Lamento pelos repórteres, mas admito que isso é culpa da imprensa, que vira e mexe acha graça em tudo o que os dirigentes aqui falam e fazem. Acabou o respeito.”

Para entrar no mérito da questão é preciso citar novamente o radialista Romes Xavier, envolvido no caso Celsinho. Ele alfinetu a jornalista Fabiana Pulcineli na mesma rede, após ela retuitar e comentar o vídeo com a fala e a atitude de Adson: “Se um entrevistado faz isso comigo perco qualquer profissionalismo, viu. Que idiotice”, postou. Romes respondeu: Ele [Adson] é amigo do repórter Juliano. É porque você [Fabiana] não tem amigos.”

Este é o cerne da questão: jornalista não tem de ser amigo de entrevistado. Aliás, é muito salutar que não seja, para que não paire suspeição sobre as informações que apura e divulga. Só que a imprensa goiana, notadamente a esportiva, faz há décadas exatamente o oposto, como bem repara Pasquetto, no que foi relatado dois parágrafos acima.

Que fique claro: é preciso que repórteres esportivos se aproximem de dirigentes e outras fontes – isso é necessário para ter acesso a uma quantidade e também uma qualidade maior de informações. Mas essa proximidade precisa ter um limite para não se corromper.

Recentemente, uma emissora e um clube de futebol exaltaram o fato de um repórter (dessa emissora) estar incorporado à delegação para fazer a cobertura de um jogo da equipe fora de Goiânia – não é necessário nem conveniente citar nomes, porque não é a primeira vez nem será a última. Ainda que pese o fator financeiro, de a crise tornar onerosa como poucas vezes uma cobertura padrão por parte de rádios e demais veículos, não parece que ajuda na credibilidade esse tipo de parceria. Ou o repórter não se sentiria incomodado em relatar notícias negativas sobre o clube?

A imprensa goiana é profissional, não há o que se discutir. Há ótimos jornalistas em todos os veículos, mas, como em toda profissão, há também os que deixam a desejar. O fato de ser profissional, porém, não significa que a qualidade do profissionalismo esteja suficiente. Pelo contrário, é preciso repensar muita coisa e adequar o modelo aos novos tempos, que não permitem grosserias e preconceitos disfarçados de “irreverência” ao microfone.

Nesse sentido, a Sagres 730 AM, já há alguns anos, tem mostrado estar um passo à frente. Com tradição em transmissões esportivas desde os tempos de Rádio Clube (depois Rádio K do Brasil), a emissora tem prezado pela sobriedade e pelo cuidado com a informação. No todo do segmento, porém – como também às outras áreas do jornalismo no Estado –, falta mais tom crítico.