Caso ‘Brasil inabitável até 2070’ é um exemplo de péssima comunicação científica
24 julho 2024 às 18h24
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Em 2020, três cientistas publicaram na revista Science um estudo cujo título pode ser traduzido como “O surgimento de calor e umidade severos demais para a tolerância humana”. Nesta semana, o paper foi descoberto pela imprensa brasileira, que o noticiou em tom de profecia do fim do mundo: “Brasil inabitável até 2070”. Entretanto, há muitos equívocos na comunicação desta pesquisa.
A maioria das notícias que tratam do artigo dão a entender que a pesquisa é recente, que é da Nasa (agência espacial americana) e que trata do Brasil. Na realidade, o artigo de 2020 não cita o Brasil. Em 2022, foi revisado no blog de Colin Raymond, pesquisador da Nasa e um dos autores do artigo, que citou o Brasil como uma das regiões vulneráveis.
A única menção ao “prazo de 50 anos para para salvar o Brasil” ocorre no rodapé da publicação de Colin Raymond: “As áreas mais vulneráveis incluem o sul da Ásia, o Golfo Pérsico e o Mar Vermelho por volta de 2050; e o leste da China, partes do sudeste da Ásia e o Brasil até 2070”.
No estudo original, os pesquisadores mapearam eventos de calor extremo entre 1979 e 2017. Esses eventos foram definidos pela temperatura de bulbo úmido acima de 35ºC. A temperatura de bulbo úmido é diferente da temperatura do termômetro comum, pois correlaciona calor e umidade para marcar o estresse térmico no corpo humano. Os 35º C representam o limite fisiológico, um ponto a partir do qual o suor não é capaz de resfriar o corpo.
Na pesquisa de 2020, cientistas analisaram os dados colhidos por estações meteorológicas nestes 38 anos e observaram que eventos de calor de bulbo úmido acima de 30°C mais do que duplicaram em frequência desde 1979. Os modelos projetavam as primeiras ocorrências de temperatura de bulbo úmido de 35°C para meados do século 21, mas, desde então alguns locais já registraram estes eventos.
“Descobrimos que o calor úmido extremo é altamente localizado tanto no espaço quanto no tempo e foi subestimado nos estudos de reanálise”, escreveram os pesquisadores. “Nossas descobertas ressaltam, portanto, o sério desafio colocado pelo calor úmido, que é mais intenso do que o relatado anteriormente e cada vez mais severo”.
Caso a temperatura média do globo exceda os 2,5 ºC de aquecimento em relação ao período pré-industrial, diversas regiões do mundo podem passar a exceder os 35°C de temperatura de bulbo úmido com frequência — escrevem os cientistas. Neste mapa interativo, é possível ver os registros de eventos de bulbo úmido acima de 35ºC.
A situação é, de fato, grave e preocupante. Não é, porém, irremediável.
Sem sensacionalismo
Esclarecido o que o estudo de fato afirmou, é preciso destacar o que a pesquisa não disse, mas que foi sugerido pelas notícias sensacionalistas. Primeiro, o búlbo úmido de 35 ºC não extingue a vida humana onde ocorre. “Estas condições, próximas ou além da tolerância fisiológica humana prolongada, ocorreram principalmente apenas durante 1 a 2 horas de duração”, destacam os cientistas.
Além disso, o Brasil é um país imenso. Afirmar que “o Brasil ficará inabitável em 50 anos” é uma tentativa apelativa de chamar a atenção para um problema muito real, que acaba por dessensibilizar o leitor em um fatalismo determinista. Afinal, se todo o país está condenado, do que adiantam nossos esforços?