Carta de Lacerda para o imbrochável Bolsonaro: vai perder a eleição se continuar atacando mulheres
11 setembro 2022 às 00h01
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Ninguém é mais arrogante, violento, agressivo e desdenhoso contra as mulheres que um homem inseguro de sua própria virilidade. — Simone de Beauvoir
Sabe, Excelência, que passei alguns anos no Purgatório, porém, por bom comportamento — o amor por Shakespeare ajudou muito —, me enviaram para o Céu. Depois de duas semanas me escondendo (para não brigar) com o “omisso” Castello Branco e o “bronco” Costa e Silva, vi, ao longe, Machado de Assis, o Frente Ampla (como é conhecido nas plagas celestiais), a quem me apresentei. Com seu jeito irônico, conversava com Golbery do Couto e Silva. Esperei a conversa terminar e me anunciei ao gigante literário. Para minha surpresa, o Bruxo do Cosme Velho disse: “Conheço o sr. Li a ‘Tribuna da Imprensa’, apreciei alguns de seus artigos e aprovei seu trabalho como editor da Nova Fronteira”.
Ante a boa acolhida, resolvi fazer uma consulta ao autor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, o romance que inaugura a literatura de alta qualidade no Brasil: “Eu estava pensando se é oportuno escrever uma carta para o presidente Jair Messias Bolsonaro alertando-o para não agredir mulheres. Mas fui aconselhado por Golbery e por Heitor Aquino Ferreira, que acaba de chegar, a nada fazer. Além do que Bolsonaro não é dado a leitura e conselhos” (desculpe, Excelência, se exagerei, mas no Céu, como se sabe, não há censura, e aqui todo mundo é civilizado, quiçá de centro; please, não confunda com o Centrão).
Excelência, o autor de “Memorial de Aires” contrapôs: “Deixe de bobagem, Carlos. Escreva e vai acontecer alguma coisa”. “O sr. me recomenda algum caminho?” Machado mexeu na barba, esbranquiçada e com ligeiro tom pastel na pontas, e disse: “Comece assim: “Mui digno Bolsonaro, você vai perder a eleição. Entenda o motivo lendo esta carta”. Eu quis saber: “Vai funcionar?” O criador de “Dom Casmurro” redarguiu: “Claro que vai. As palavras chaves são ‘você vai perder a eleição’”.
Brás Cubas, que se tornou conselheiro de Machado de Assis — Aires, o sr. sabe, ficou no purgatório —, acrescentou: “As mulheres são 53% do eleitorado. Portanto, diga ao jovelho capitão que elas podem derrotá-lo”. Capitu, que se tornou cuidadora de Bentinho, cercada por anjos e Escobar, vociferou: “Basta de misoginia, presidente”. O sr. não pode ouvi-los, por isso transmito-lhe o que disseram. Me perdoem se foram indiscretos e deselegantes.
Excelência, com o autorizo de Machado de Assis, escrevi esta breve carta — com apoio (e revisão) de São Jerônimo e anuência de São João e São Paulo. Shakespeare, que mora ao lado, deu seu “ok” e gritou “merda”. Não fiquei irritado, ante o espanto do linha dura Costa e Silva, que fica beirando e boiando, sem entender nada. “Merda”, no caso, quer dizer “sorte”. No teatro se diz assim, presidente.
Por favor, presidente, não deixe o Louro José, conhecido como Luciano Hang, ler a carta. Por certo, o periquito falante não a entenderia. Criaria uma teoria da conspiração sugerindo que estou me aliando às mulheres para derrotá-lo. Ai de mim: não tenho poder algum.
Prez, enrolei um pouco, mas é que eu precisava falar ao sr. sobre a vida no Céu. Até gostaria de alertá-lo que Deus, discreto e onipresente, não aprecia muito aqueles que falam seu nome em vão. Ele sabe: há ateus que, na prática, são melhores “cristãos”. São Pedro me disse que um homem que se casou três vezes precisa ter cuidado ao dizer que defende a família. Será que só defende a última família?
Espero não estar amolando o sr., com tanta deambulação, caro Prez. Posso chamá-lo de Jair? Não tenho coragem de nominá-lo de Messias. Tenho receio de que Jesus não aprove.
Mas, Excelência, vamos lá. Vera Magalhães é uma jornalista competente e objetiva. Lembre-se que nunca agradou muito ao, como se diz, lulopetismo. O que a repórter e articulista, caro Jair — desculpe-me a intimidade; é que no Céu não existe hierarquia, mas, Prez, não se trata de “comunismo celestial” —, escreve deveria servir de motivo de reflexão. No Céu reina a democracia, como, até agora, no Brasil. Descobri que a democracia é o único regime que permite a existência de radicais de direita como eu e tu, Prez.
Sabe por que o sr. permanece atrás de Lula da Silva, do PT? Porque não ouve mulheres notáveis, como Vera Magalhães. A jornalista diz que o sr. tem uma mente autoritária e golpista? Não sei. Mas, se disse, não está, é claro, falsificando a verdade. Está registrando um fato. O sr. se apresenta como democrata mas fala como ditador.
Mais uma vez, desculpe-me, Excelência, se estou perorando. Espero, porém, não estar sendo agressivo.
Lembrei-me, agora, da jornalista Patrícia Campos Mello, da “Folha de S. Paulo”. Por que o sr. a ofende com palavras duras e não verdadeiras? Porque as palavras da repórter são verdadeiras. Elas interpretam o sr. à risca, não é? Ao que parece, mulheres, notadamente jornalistas, estão interpretando o sr. com mais precisão, cavoucando lá no inconsciente, como se fossem psicanalistas de sua alma um tanto confusa — daí, quem sabe, sua irritação.
Quando puder, Excelência, deixe o ódio de lado — dizem, lá no Purgatório, que o ódio é brochante (e lá o exército de sofredores não tem direito a Viagra) — e releia o que escreveram Patrícia Campos Mello e Vera Magalhães. Uma leitura atenta certamente levará o sr. a concluir que as jornalistas estão corretas, e o sr. não. Mais: se tiver autocrítica, mudando seu comportamento, quem sabe poderá conquistar o voto de algumas mulheres e ir para o segundo turno.
Excelência, li que o sr. comparou sua mulher, Michelle, com Janja, a mulher de Lula da Silva. Ao fazê-lo, de maneira descortês, o sr. ofendeu não apenas Janja, e sim todas as mulheres e aposto que nem Michelle o aprovou, embora, por motivos políticos, não possa tornar pública a sua opinião.
Quanto à religião, o sr. passa a impressão de que só quer os votos dos evangélicos, e não de todos os cristãos e dos adeptos de outras religiões. Por que atacar o candomblé? Não se trata de um gesto racista?
Será que quem ataca tanto as mulheres não gosta de mulheres? Fica-se com a impressão, Excelência, de que não critica os homens com o mesmo fervor. Por que será? Prez, adianto que, como sabe, não sou um homem de esquerda. Pelo contrário, sou de direita e operei pelo golpe civil-militar de 1964 e apoiei a ditadura civil-militar durante algum tempo. Sei, na própria pele, que ditadura, e lutei por uma, não é positiva, a longo prazo, nem para aqueles que a defendem. Carrego a pecha de “golpista” por todos os cantos do Céu. Até Salvador Allende vira as costas quando me vê, dizendo: “Ih, lá vem aquele golpista do Lacerda”. Nem me chama de Carlos. Como sabe, fiz as pazes com Juscelino Kubitschek e João Goulart, o Jango. Mas sinto que, pela história de que fui golpista, desconfiam de mim.
Excelência, também fiquei sabendo que foi agressivo com a jornalista Amanda Klein, da Rádio Jovem Pan. Mas, Prez, ela tem o direito de criticá-lo. A crítica pode ajudá-lo a acordar. Não deixe para acordar no dia 2 de outubro, pois poderá ser tarde. As mulheres, o voto delas, podem derrotá-lo de maneira fragorosa, e no primeiro turno.
Não estou dizendo, Prez, que o sr. já perdeu. Estou apenas sugerindo que, se não recuperar parte dos votos das mulheres, o sr. poderá acordar, em 1º de janeiro, sem mandato, sem poder e, possivelmente, respondendo a uma infinidade de processos judiciais — e estará à mercê de juízes de primeira instância e terá de pagar seus advogados, que custarão uma fortuna. Até terá de vender alguns imóveis, seus ou dos filhos, para pagá-los.
Ah, Prez, não ataque a extraordinária repórter investigativa Juliana Dal Piva, autora do livro “O Negócio do Jair — A História Proibida do Clã Bolsonaro”. Ah, sim, depois de ler sua reportagem sobre a compra de imóveis pelos Bolsonaros com dinheiro vivo — a família é do tempo em que se guardava dinheiro debaixo do colchão (meu bisavô fazia isto, no século 19) —, posso dizer que, se a “Tribuna da Imprensa” estivesse na ativa, eu a contrataria.
O que percebo, caro Prez, é que as mulheres estão dizendo a verdade ao sr., e do modo como deve ser expressa — sem tergiversações. Admito ao sr., Excelência, que também não sabia ouvir as mulheres, exceto aquelas extremistas que participaram da Marcha com Deus Pela Família e pela Liberdade. Porém, não culpo ninguém por minha cegueira. Se eu tivesse ouvido mulheres sensatas e críticas, como Vera Magalhães, Amanda Klein, Patrícia Campos Mello, Juliana Dal Piva, Daniela Lima e Miriam Leitão (a jornalista mais completa do Brasil hoje), não teria patrocinado o golpe de 1964. Afinal, os militares se deram bem, e eu me dei mal, pois acabei cassado pela toupeira do Costa e Silva. Mas, cá entre nós, Excelência, o mais provável é eu tenha sido mais toupeira do que o marechal.
Excelência, acorde. Talvez ainda haja tempo. Escute as mulheres. Lembre-se: elas representam 53% do eleitorado brasileiro. Como me aconselhou Machado de Assis, devo concluir assim: se o sr. continuar atacando mulheres, como as jornalistas citadas, certamente terá que empossar Lula da Silva no dia 1º de janeiro de 2023.
Ah, Machado de Assis me chama e me transmite uma dica de Quincas Borba, amigo de Shakespeare e Bentinho: “Bolsonaro, Prez, para de ser um vendedor de crise. Aprenda a ‘comercializar’ esperanças reais. E só mais uma coisinha: seu adversário real, para além das conspirações habituais, é Lula da Silva, não é o Supremo Tribunal Federal e os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso”.
Excelência, achei Quincas Borba meio agressivo. Perdoe-o, por favor. No Céu, sob orientação de Santo Agostinho, a gente não “mede” as palavras. Quincas Borba anda meio nervoso com Escobar e Bentinho, leitores de “Otelo”, talvez por isso tenha estocado o sr.
Sabe quem chegou ao Céu, nos últimos dias? A grande atriz Maria Fernanda, minha amiga querida. Ela e Cecília Meirelles mandam dizer que, se continuar misógino, o sr. será derrotado no dia 2.
Abraço do seu
Carlos Frederico Werneck de Lacerda