‘Pensa-se que o trabalho escravo é algo que acontece só nos rincões isolados do país, mas no Estado mais rico da nação isso também acontece. Muitas vezes, sob olhares omissos e contemplativos, que concordam com essa ‘normalidade’ do trabalho escravo doméstico’ — Jamile Freitas Virginio, auditora fiscal do Trabalho

Todo país precisa de uma elite — cultural, financeira, política — para levá-lo adiante e torná-lo desenvolvido e, também, menos desigual.

O que dizer de uma elite, de um casal da elite — com mãe médica, marido empresário e três filhos médicos —, que, no lugar de se comportar como humanista, decide escravizar uma mulher pobre, analfabeta, negra e idosa?

Pode-se construir um país, que ambiciona se tornar, digamos assim, uma Noruega, com uma elite violenta, insensível, estúpida e radicalmente não-inclusiva?

Chamar duas pessoas que escravizam uma terceira, de 82 anos, de “elite” talvez nem seja preciso. Porque elite tão-somente por dinheiro, sem preocupações humanas e sociais efetivas, como no caso, às vezes é, a rigor, a vanguarda do atraso.

A escravidão dos negros foi abolida, em tese, em 13 de maio de 1888. Há apenas 134 anos. Escrevi em tese, sem aspas, porque a escravidão ainda não foi inteiramente abolida no Brasil.

Há pouco tempo, uma professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a venerável UFRJ, foi denunciada por manter uma mulher, negra, como escrava. O meio universitário pouco discutiu o assunto, que aparece em livros de seus mestres e doutores.

Trata-se de um caso isolado? De maneira alguma. Há outros casos, e há os que ainda não foram descobertos, porque, por assim dizer, são “normalizados” pelas famílias.

São Paulo é o Estado mais rico do país, com um PIB superior ao da Argentina e ao do Chile, sendo superado, na América Latina, apenas pelo Brasil e pelo México. Uma de suas cidades mais prósperas é Ribeirão Preto. Pois de lá, um município rico e onde há uma unidade da Universidade de São Paulo (USP), chega uma notícia que, se choca, não leva os brasileiros a chorarem. No momento, chora-se a perda da Copa do Catar e crucifica-se o técnico Tite e alguns jogadores, como Daniel Alves — que quase não pisou em campo — e Neymar, dada sua imaturidade (nem mesmo o maduro Casemiro se comportou como o líder que era necessário em campo).

Tinha dia que eu chorava o dia inteiro de tristeza. Tristeza de trabalhar e ficar quieta. Não queria [estar lá]. Agora estou feliz. Estou na casa do meu irmão. Aqui é uma paz, e lá não era. Aqui não tem ninguém que me amola, que me aborrece. É só nós dois

Pois, enquanto o país voltava seus olhos para o Catar, um país pequeno e rico, dados o petróleo e o gás, a médica-pediatra Maria de Fátima Nogueira Paixão e o empresário Hamilton José Bernardo eram denunciados pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) porque mantinham, em sua casa, uma mulher de 82 anos, negra e analfabeta, em situação análoga à de escravidão.

A idosa, que não teve o nome mencionado pela imprensa, para preservá-la, trabalhava na casa de Hamilton Bernardo e Maria de Fátima havia 27 anos. Ou seja, se tornou escrava aos 55 anos.

Chamemos a sra. de “Amada” (em homenagem à escritora americana Toni Morisson, autora do romance “Amada”, sobre a duríssima vida dos negros numa sociedade de brancos-escravocratas). Pois sim: Amada não teve uma vida. Porque entregou sua vida à família de Hamilton Bernardo e Maria de Fátima. Não teve filhos, mas ajudou a criar os três do casal. É espantoso que, dos cinco membros da família, nenhum tenha se revoltado com a situação da mulher escravizada.

“Amada” saía de casa unicamente para ir à padaria, comprar pães para a família, e, eventualmente, para visitar um irmão, noutra cidade. Sua vida era vivida, se era vivida, na casa do casal apontado como “escravocrata”.

O Ministério Público do Trabalho descobriu que Amada não tinha carteira de trabalho, não recebia salário e não tinha folgas. Sua “dona” enviava, mensalmente, 100 reais para seu irmão, que mora em Jardinópolis, em São Paulo.

A auditora fiscal do Trabalho Jamile Freitas Virginio postula que “todos os indicadores de trabalho análogo ao de escravo estão presentes no caso, como a vulnerabilidade, a retenção salarial e a negação sistemática de todos os direitos trabalhistas”.

Ressalve-se que Maria de Fátima disse à fiscalização que pagava um salário-mínimo a “Amada”. Mas não apresentou nenhum recibo comprovando o que disse. A pensão da idosa, de acordo com o MPT, era apropriada pela médica.

“A vítima trabalhava há quase três décadas sem nenhum recolhimento previdenciário, sem registro na carteira de trabalho, sem garantia de recebimento de salário, de férias, de 13º salário. Mesmo o descanso semanal não era respeitado como deveria, as férias não eram concedidas como deveriam. Havia uma negação da pessoa como um sujeito de direitos, como se ela não tivesse direito a ter direitos”, afirma Jamile Freitas Virginio.

A Justiça bloqueou bens de Hamilton Bernardo e Maria de Fátima no valor de 815 mil reais. A “lista suja do trabalho escravo” pode incluir o casal. De acordo como MPT, Maria de Fátima, ao não pagar o salário de Amada, dizia que estava fazendo uma espécie de poupança para comprar uma casa para a escrava, que acreditava na fala de sua “dona”. Aos 82 anos, ainda é o sonho de “Amada”, que agora, morando com o irmão, sente-se feliz. Porque recuperou um bem de extremo valor: a liberdade.

O venerável “Estadão”, alegando que o processo é sigiloso, não publicou o nome da vítima (o que é compreensível) nem dos supostos escravocratas. Felizmente, todas as outras publicações divulgaram, merecidamente, os nomes dos algozes da sra. de 82 anos. Leia o que publicou o jornal: “Os nomes dos empregadores não foram divulgados, já que os processos relativos ao caso transitam em sigilo. A falta de identificação impediu que a reportagem conseguisse contato com a defesa deles”.

O que isto quer dizer? Nada, exceto uma palavra de dez letras: v-e-r-g-o-n-h-o-s-o! Graciliano Ramos, meu guia literário, não apreciava exclamações (“não sou idiota para viver me espantando à toa”, disse o autor de “Vidas Secas”). Mas, no caso, é crucial.