Cabe à sociedade e aos militares não caírem na articulação de Bolsonaro. O presidente parece acreditar que só uma quartelada pode evitar o retorno de Lula ao poder

O filósofo britânico John Gray diz que recuos políticos — contra a democracia — são a regra, não a exceção, na história. Por isso as instituições e a sociedade civil precisam ser fortes para garantir a vigência e a estabilidade da democracia.

Na sociedade democrática, não se deve pisar em ovos por receio de golpismo político. Ainda assim, é preciso ficar de olho naquilo que realmente quer o presidente Jair Bolsonaro, sobretudo depois que Lula da Silva, do PT, apareceu como ameaça real ao seu projeto de poder.

General Eduardo Pazuello, do Exército, fazendo discurso ao lado do presidente Jair Bolsonaro, no Rio de Janeiro | Foto: Reprodução

Pode ser que não, mas fica-se com a impressão que Bolsonaro está, agora, mais parecido com seu filho Eduardo Bolsonaro. O deputado federal por São Paulo disse, há pouco tempo, que, para fechar o Supremo Tribunal Federal, bastam um cabo e um soldado. Quer dizer, não é difícil, pois, em tese, não haverá reação. Para fechar o Congresso — a Câmara dos Deputados e o Senado —, seguindo a teoria bolsonarista, basta o quê? A prisão de um general?…

O general de três estrelas Eduardo Pazuello depôs na CPI da Covid-450 mil e, segundo os levantamentos feitos por jornais e institutos que verificam informações, teria mentido deslavadamente. O militar estaria protegendo o presidente, de quem é aliado e, até, fã.

No domingo, 23, Pazuello compareceu a evento no Rio de Janeiro, ao lado de Bolsonaro, sem o uso de máscara e ainda fez discurso, transgredindo o regulamento do Exército, que proíbe que militares da ativa participem de “assuntos de natureza político-partidária”. Suas palavras no “comício” (sim, Bolsonaro está em campanha para a reeleição): “Fala, galera! Eu não ia perder esse passeio de moto de jeito nenhum! Tamo junto, hein! Parabéns a vocês, parabéns à galera que taí, prestigiando o presidente. O presidente é gente de bem!”

Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, e o presidente Jair Messias Bolsonaro: “Um manda e o outro obedece” | Foto: Reprodução

Bolsonaro (66 anos) e Pazuello (58 anos) são homens experimentados e nada têm de ingênuos. Eles sabiam, da maneira mais ampla possível, que o general, por ser da ativa, estava cometendo uma infração grave e passível de punição. Por que desafiaram as normas do Exército? Porque, simplesmente, estão desafiando a democracia e testando os limites das Forças Armadas.

Na CPI da Covid, com o habeas corpus concedido pelo Supremo Tribunal Federal, Pazuello pôde mentir à vontade, para proteger seu chefe — afinal, “um manda e o outro obedece” —, e não ser preso. Mas o que Bolsonaro realmente queria? O mais provável que é o presidente tenha até torcido pela prisão de um general pela CPI (teria se tornando seu mártir, quase sua Joana D’arc). Porque poderia dizer aos militares: “Veja o que os políticos estão fazendo com vocês”. Claro, Pazuello não é o mesmo que “vocês”. Mas um general é o símbolo máximo do Exército. A prisão de um deles incomoda todo o corpo, ainda que a chefia tenha de seguir o que diz a Constituição.

A CPI não pôde prender Pazuello, que, por isso, atuou como um Pinóquio de primeira linha, na avaliação dos que verificaram suas “mentiras”. Para Bolsonaro, o general teve uma conduta heroica.

Generais Hamilton Mourão, Augusto Heleno e Santos Cruz: os três avaliam ato de Eduardo Pazuello como contrário ao regulamento do Exército | Fotos: Reproduções

Ao levar Pazuello para o passeio de motocicleta, numa exposição das mais públicas, Bolsonaro sabia (e sabe) o que estava fazendo. O que o presidente quer realmente é que o general seja execrado, bombardeado por reportagens e comentários na imprensa.

Por mais tosco que seja, Bolsonaro é uma águia política. Ele não está brincando. Quer usar Pazuello para insinuar que a imprensa e os políticos estão humilhando as Forças Armadas, notadamente o Exército — o grupamento militar mais poderoso.

Bolsonaro está tentando, de várias maneiras, jogar as Forças Armadas contra a sociedade civil e, sobretudo, a sociedade política. Está tentando montar uma armadilha — um alçapão — para os democratas, os que não acreditam em recuos históricos (porque, quando se acredita muito nisto, fica-se fragilizado), e, também, para os militares.

Cabe à sociedade e aos militares não caírem na articulação de Bolsonaro — que está se comportando como as velhas vivandeiras de 1964 (Magalhães Pinto e Carlos Lacerda). No fundo, o presidente parece acreditar que só uma quartelada pode evitar o retorno do PT de Lula da Silva ao poder.

Hamilton Mourão e Santos Cruz

O vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, disse a coisa certa, aquela que deveria ser dita: “Acho que o episódio será conduzido à luz do regulamento, isso tem sido muito claro em todos os pronunciamentos dos comandantes militares e do próprio ministro da Defesa. Eu já sei que o Pazuello já entrou em contato com o comandante informando ali, colocando a cabeça dele no cutelo, entendendo que ele cometeu um erro”.

O general Carlos Alberto dos Santos Cruz afirmou, de maneira enfática: “O presidente e um militar da ativa mergulharem o Exército na política é irresponsável e perigoso. Desrespeitam a instituição”.

Na quarta-feira, 19, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, disse à Comissão de Fiscalização e Controle da Câmara que “os militares podem participar de manifestações, ao contrário dos que estão na ativa” (segundo o “Estadão”). Síntese da fala do chefe do GSI: “Os da ativa não podem e serão devidamente punidos se aparecerem em manifestações políticas”.

De resto, o Exército vai punir Pazuello, para sustentar que obedece ao regulamento, mas Bolsonaro ficará, mais uma vez, impune. Ele que, de alguma forma, está tentando “puxar” os militares para alguma aventura não-democrática.