Ao receber a deputada Beatrix von Storch, neta de um ministro de Hitler e líder da extrema-direita da Alemanha, o presidente mostra desconexão com o mundo democrático

Adolf Hitler e seu ministro da Finanças, Lutz Graf Schwerin von Krosigjk | Foto: Reprodução

Há quem acredite que, por ter sido ditador na Alemanha, o austríaco Adolf Hitler (1889-1945) chegou ao poder por intermédio de um golpe de Estado. Na verdade, o líder nazista chegou ao governo do país de Bach, Beethoven, Goethe e Heine apoiado por parte significativa das elites e, uma vez no Executivo, conquistou o povo alemão.

A ascensão de Hitler foi, por assim dizer, meteórica. Em 1923, tentou dar um golpe, no chamado Putsch da Cervejaria de Munique, e acabou preso pela polícia da Baviera. Condenado, foi levado para uma penitenciária, onde, com o auxílio de Rudolf Hess, escreveu “Minha Luta” — a bíblia dos nazistas. Dez anos depois, se tornou chanceler da Alemanha, num pacto faustiano com as elites e o povão.

Assenhorando-se rapidamente do poder, Hitler perseguiu, de maneira implacável, todos os seus adversários, tanto no partido Nazista quanto no Partido Social-Democrata e no Partido Comunista. A rigor, quem não era aliado canino era considerado inimigo. Em 1934, inspirado nos campos soviéticos de Lênin e Stálin, criou campos de concentração, que ainda não eram considerados de extermínio, mas lá se torturava e matava adversários políticos e, inclusive, padres, como em Dachau.

Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, abraça dois membros da extrema-direita da Alemanha, Beatrix con Storch e Sven von Storch | Foto: Reprodução

Hitler decidiu rearmar a Alemanha e adotou medidas que contribuíram para a recuperação parcial da economia. Na prática, se preparava para a guerra, o que países como a Inglaterra e a França não perceberam com nitidez. Os primeiros-ministros da França, Édouard Daladier (1884-1970), e da Inglaterra, Neville Chamberlain (1869-1940), acreditaram, de maneira equivocada, que uma política meramente de apaziguamento poderia conter o ditador.

Ao perceber a “fragilidade” francesa e britânica, Hitler decidiu avançar. Ante a inação de outros países, anexou a Áustria e invadiu a Tchecoslováquia, com a desculpa de que os alemães dos Sudetos estavam sendo perseguidos. Os países de Proust e Shakespeare assistiam, quase silentes, a desenvoltura da Alemanha — aparentemente admirados com o novo poder germânico.

Em agosto de 1939, temendo que França e Inglaterra se unissem à Alemanha para atacá-la, o líder da União Soviética, Ióssif Stálin, assinou um tratado de paz com Hitler. Os dois países dividiram a Polônia e mantiveram, entre 1939 e 1941, relações comerciais estreitas.

Em setembro de 1939, a Alemanha invadiu a Polônia e, finalmente, França e Inglaterra acordaram e declararam guerra à nação dirigida por Hitler. Os nazistas começaram ganhando a guerra, acossando os Aliados. Stálin assistiu a tudo, avaliando que os “imperialistas” se destruiriam e, enquanto duelavam, a União Soviética iria se preparando industrial e militarmente.

Bia Kicis, presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, com Beatrix von Storch: sinal de identidade | Foto: Reprodução

Mas Hitler não desistira de atacar os bolcheviques, aos quais atribuía muito dos males do mundo. A União Soviética, com o comunismo, era considerada como um inimigo a ser destruído pelos nazistas. Então, em 1941, a Alemanha atacou o país de Púchkin e Tchékhov. Destruiu cidades e matou milhares de pessoas. O governo de Stálin, arrasado e perdido, não sabia o que fazer, inicialmente. Milhares morreram sob bombardeio germânico. Aos poucos, os soviéticos reagiram e, contando com o apoio os Aliados, começaram a vencer o poderoso inimigo.

É provável que, se não tivesse invadido a União Soviética, concentrando suas energias na luta contra a Inglaterra, que estava debilitada, a Alemanha teria ganhado a guerra. Outro equívoco foi o ataque japonês a Pearl Harbor, que colocou os Estados Unidos diretamente na guerra europeia e no pacífico, ao lado da Inglaterra (a França estava ocupada pelos nazistas). Com seus imensos recursos, e soldados descansados, o país de Franklin D. Roosevelt foi decisivo para a vitória dos Aliados, assim como a Inglaterra, com sua coragem extraordinária, e a União Soviética, com seus soldados guerreiros.

Enquanto brigava com ingleses, russos e americanos, além de poloneses, franceses, canadenses, australianos e brasileiros, Hitler matava judeus (6 milhões), testemunhas de Jeová, ciganos, homossexuais — assim como adversários políticos internos e externos — nos campos de extermínio, como Auschwitz-Birkenau e Treblinka, ambos na Polônia de Jospeh Conrad (1857-1924) e da poeta Wislawa Szymborska (1923-2012).

Beatrix von Storch e o ministro da Ciência e da Tecnologia, Marcos Pontes: a deputada da Alemanha foi recebida como chefe de Estado | Foto: Reprodução

O governo de Getúlio Vargas mandou 25 mil militares, entre oficiais (como Aguinaldo Caiado, que, embora nascido no Rio de Janeiro, era filho de goianos; ele teve papel decisivo na tomada de Monte Castelo) e soldados para lutar contra os alemães na Itália. Os brasileiros (111 deles goianos) lutaram bravamente e mais de 400 perderam a vida na terra de Dante e Leopardi. O soldado goiano Aldemar Ferrugem levou um tiro e morreu. O tenente Benvindo Belém de Lima, igualmente goiano, voltou para o Brasil ferido, passou por tratamento severo, mas nunca se recuperou, morrendo aos 32 anos (o curioso é que Belo Horizonte, e não Goiás, decidiu homenageá-lo dando seu nome a uma rua). Os nazistas afundaram navios — que não participaram da guerra — e mataram centenas de brasileiros. Morreram mais civis brasileiros em navios do que na guerra.

A guerra terminou em 1945, depois de várias batalhas sangrentas, como a de Kusrk e da Normandia, e do suicídio de Hitler. Calcula-se que morreram de 50 a 80 milhões de pessoas na guerra, entre vivis e militares. A União Soviética (decisiva para a vitória dos aliados) perdeu pelo menos 25 milhões de pessoas.

Com o fim da guerra, a Alemanha ficou dividida entre os Aliados capitalistas e os comunistas, o que levou o país a se tornar dois — a Alemanha Ocidental (capitalista) e a Alemanha Oriental (comunista). Em 1989, com a derrocada do comunismo, que levou à queda do muro de Berlim, houve a reunificação.

Hitler e Stálin estão “vivos” porque seus “herdeiros” em várias partes do mundo não os deixam morrer | Imagem: Reprodução

O ex-professor de Oxford Robert Gellately é autor de um livro notável, “Apoiando Hitler — Consentimento e Coerção na Alemanha Nazista” (Record, 517 páginas, tradução de Vitor Paolozzi). O pesquisador mostra que o apoio a Hitler não era produto apenas da coerção e que os alemães se “apaixonaram”, por assim dizer, pelo líder nazista. Ele também acaba com o mito de que os alemães não sabiam do Holocausto.

Com o término da batalha, os vencedores condenaram alguns nazistas à morte — Hitler, Himmler, Goering e Goebbels, as figuras centrais, se suicidaram — e outros à prisão. Muitas nazistas não foram penalizados e, aos poucos, se reintegraram à sociedade, como se fossem democratas e, até, vítimas das pressões de Hitler e asseclas. Os governos do país não voltaram a apoiar nenhuma ideia nazista — mesmo os gestores conservadores, como a chanceler Angela Merkel, abominam as pregações do ditador.

Porém, alguma coisa mal resolvida na sociedade alemã, quiçá por falta de uma penalização judicial mais ampla — o que poderia ter provocado uma convulsão social no país, dado que sua conexão com Hitler era mais ampla do que às vezes se diz —, gestou os grupos neonazistas.

País democrático, que indenizou os judeus pelas ações inomináveis de Hitler, a Alemanha convive, relativamente bem, com seus vários grupos políticos. Há conservadores, socialdemocratas, ambientalistas e extremistas de direita. A extrema-direita, fortalecida, conta com 86 deputados no Parlamento nacional. Trata-se da Alternativa para a Alemanha (AfD).

A Alternativa para a Alemanha é um partido nazista? Se fosse, o país não permitiria, porque o nazismo é a principal ferida, ainda densamente aberta, do país. Mas a AfD adota ideias tão extremadas — racistas, islamofóbicas, anti-homossexuais, contra imigrantes — que ninguém reluta em nominá-la de adotar práticas neonazistas.

A deputada Beatrix von Storch, da AfD, frequentemente defende ideias que os próprios alemães chamam de “neonazistas”.

Beatrix von Storch é neta do ministro das Finanças de Hitler, o conde Lutz Graf Schwerin von Krosigk. Deve ser condenada por ser parente de um nazista que, durante 12 anos, trabalhou como ministro, e apoiando todas as medidas do ditador totalitário? Claro que não.

A propósito, no livro “KL — Una Historia de los Campos de Concentración Nazis” (Crítica, 1100 páginas, tradução de Cecilia Belza e David Léon), o historiador alemão Nikolaus Waschmann relata que Lutz von Krosigk, em 1938, tentou reduzir a proliferação de campos de concentração, mas não por razões humanitárias, e sim por contenção de despesas. Beatrix com Storch tem de ser avaliada, como política e cidadã, pelo que diz e faz, não pelos atos do avô — que, de resto, apoiou todas as políticas de Hitler.

A questão chave é esta: ao se tornar política, Beatrix von Storch rompeu com as ideias do avô e de seus aliados? Tudo indica que não. Como o Estado alemão não admite práticas nazistas — como o Holocausto, um exemplo extremo —, tolerando, no máximo, determinados discursos e protestos da extrema-direita, a deputada e seus aliados, como o marido Sven von Storch, são mais “amenos”. Mas ela, assim como membros de seu partido, propaga o discurso do ódio contra imigrantes e são abertamente racistas. A deputada disse, há pouco empo, que há uma “horda de estupradores” entre imigrantes e sugeriu que policiais atirassem em mulheres e crianças “que tentassem entrar no país”.

Fundado em 2013, o partido Alternativa para a Alemanha professa o discurso do ódio aos estrangeiros. Suas ideias são apontadas como racistas e neonazistas.

O Museu do Holocausto, baseado em Curitiba, emitiu uma nota precisa sobre o encontro da presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, Bia Kics, com Beatrix von Storch: “É evidente a preocupação e a inquietude que esta aproximação entre tal figura parlamentar brasileira com Beatrix von Storch representa para os esforços de construção de uma memória coletiva do Holocausto no Brasil e para nossa própria democracia”.

Noutra nota, também precisa, a Confederação Israelita do Brasil assinalou que “lamenta a recepção dada a representante do partido Alternativa para a Alemanha em Brasília. Trata-se de partido extremista, xenófobo, cujos líderes minimizam as atrocidades nazistas e o Holocausto. O Brasil é um país diverso, pluralista, que tem tradição de acolhimento a imigrantes. A Conib defende e busca representar a tolerância, a diversidade e pluralidade que definem a nossa comunidade, valores estranhos a esse partido xenófobo e extremista”.

Como representa um risco para a democracia, os membros da Alternativa para a Alemanha são mantidos sob vigilância pela Inteligência do governo alemão.

Entre 1923 e 1933, um período de dez anos, a Alemanha e o mundo não levaram Hitler a sério. Pois, no prazo de uma década, ele chegou ao poder e implantou o regime nazista na Alemanha e em parte da Europa. As tragédias se repetem, às vezes como farsa e simulacro, mas se repetem. Líderes totalitários começam mignons, como Beatrix von Storch, mas, de repente, podem se tornar Hitlers… gigantes.

Os nazistas mataram brasileiros (centenas deles militares), na Itália e na costa marítima do Brasil. Mesmo assim, Bolsonaro e seus aliados — e até o ministro da Ciência e Tecnologia, o ex-astronauta Marcos Pontes — receberam, alegremente, uma integrante da extrema-direita alemã que não renega o nazismo. Falta compostura ao presidente —como a Marcos Pontes — e fica patente a profunda desconexão dele com o mundo real e moderno. A história do Brasil, com suas centenas de militares e civis assassinados pelos nazistas alemãs, na década de 1940, foi solene e olimpicamente ignorada por um político que se apresenta como “nacionalista” e “patriota”.

Joe Biden, um democrata autêntico, não receberia Beatrix von Storch. Winston Churchill, que talvez Bolsonaro admire, não abraçaria Hitler.

Vale publicar um trecho do poema “Os herdeiros de Stálin”, do poeta russo Ievguêni Ievtuchenko: “O Partido/ me ordena/ que eu não cale mas fale./ E mesmo que alguns repitam:/ “Deixe disto!”,/ eu insisto./ Enquanto neste mundo houver herdeiros de Stálin,/ para mim,/ no Mausoléu,/ Stálin ainda resiste”. Troque Stálin por seu irmão gêmeo, Hitler, e entenderá porque não foi uma boa ideia Bolsonaro se abraçar, sorridente, ao casal Beatrix von Storch e Sven von Storch. Vale ressaltar que é o presidente brasileiro que abraça os dois integrantes da extrema-direita alemã.