Se um policial deve ser atendido depois do criminoso, após ter defendido as pessoas de bem, os cidadãos, por que devemos continuar a pedir a sua ajuda para nos proteger?

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No romance “A Escolha de Sofia” (Geração Editorial, 632 páginas, tradução de Vera Neves Pedroso), do escritor americano William Styron, uma personagem judia, mãe de duas crianças, é obrigada a decidir pelos nazistas a respeito de qual delas “quer” salvar do extermínio. A opção era única: uma ou outra. Escolha feita, vidas destruídas, irremediavelmente. Uma criança morreu num dos campos de extermínio de Hitler. A mãe se tornou uma morta-viva.

A filósofa alemã Hannah Arendt, judia como a mãe do romance de William Styron, sugeriu que uma das principais faculdades do ser humano é sua capacidade de julgar, de se posicionar. Por isso, embora possa parecer inoportuno, uma pergunta feita pela apresentadora do programa “Encontro”, a jornalista Fátima Bernardes, pode até parecer mal colocada, mas é pertinente. A estrela da TV Globo quis saber de seus convidados se os médicos deveriam atender (tratar) primeiro, num hospital, um policial ou um bandido feridos. É uma questão ética, a indagação, portanto não tem nada de ilegítima e cada um deve respondê-la como quiser. Eu não hesitaria nenhum minuto, se fosse médico: salvaria (trataria) primeiro o policial. Em seguida, se fosse possível, salvaria (trataria) o bandido. A dimensão ética precisa ser enfrentada e, mesmo um médico, deve travá-la com coragem. Se, após salvar (ou tentar salvar) o policial, o homem de bem, não tentasse salvar o bandido, um homem do mal, aí, sim, deveria ser criticado.

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Num desvio ético flagrante, os convidados de Fátima Bernardes decidiram que os médicos deveriam atender primeiro o bandido, que estaria em estado mais grave. Tais convidados merecem críticas, até acerbas, mas a opinião deles é a opinião deles. Por que não podem tê-la? Mas também podem e devem ser criticados.

Contrapondo-se aos que são favoráveis a atender primeiro o criminoso, o deputado federal Jair Bolsonaro — que não é a besta fera pintada pela esquerda ortodoxa — sustenta que Fátima Bernardes e a mídia estão se comportando como “marginais”, pois estariam defendendo direitos humanos exclusivamente para bandidos.

“Fátima Bernardes prefere conduzir o seu programa dando mais atenção a um traficante ferido do que a um policial ferido, um herói a serviço nosso na rua. Uma política completamente equivocada sobre direitos humanos, onde só a bandidagem encontra guarita junto a esses também marginais defensores dos direitos humanos”, disse Bolsonaro. A flacidez moral de Fátima Bernardes, ou de seus convidados, levou Bolsonaro a responder de maneira excessiva. A jornalista e a imprensa não são “marginais”, mas, em alguns casos, podem ser consideradas como equivocadas. Bolsonaro está certo quando diz que o policial deve tratado primeiro pelo médico. Mas há uma dimensão ética e médicos, qualificados para salvar vidas, de maneira indiscriminada, sempre terão dificuldade de enfrentá-la. Para eles, quando estão salvando uma pessoa, não importa se é policial ou bandido. Estão salvando um ser. Mas, se um policial deve ser atendido depois de um criminoso, depois de ter defendido as pessoas de bem, os cidadãos, por que devemos continuar a pedir a sua ajuda para nos proteger?

Os médicos também devem fazer sua escolha de Sofia. Humanistas, por certo, certamente dirão que não. Na prática, é provável que façam isto várias vezes durante sua vida profissional.