Bolsonaro “caçou” a democracia e a democracia o “cassou”. País tende a ficar mais tranquilo

02 julho 2023 às 00h00

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“Cara, se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo. Não é querer desmerecer o soldado e o cabo, não. O que é o STF? Tira o poder da caneta de um ministro do STF. Se prender um ministro do STF, você acha que vai ter uma manifestação popular a favor do ministro do STF, milhões na rua?” — Eduardo Bolsonaro, deputado federal do PL
O ex-militar Jair Messias Bolsonaro nasceu em Glicério, São Paulo, em 21 de março de 1955. O ex-presidente tem 68 anos.
Na sexta-feira, 30, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu que Bolsonaro está inelegível por oito anos. Então, não poderá disputar eleição até 2030 (leia uma interpretação diversa abaixo), quando terá 76 anos e será, portanto, um idoso que terá vivido (se vivo estiver) acima da média de idade dos brasileiros.
Porém, Bolsonaro não poderá disputar eleição em 2030 (leia adiante). Só poderá ser candidato na eleição de 2032 — quanto todo o país votará para prefeito e vereador.
Daqui a nove anos, portanto, o líder mais radical da direita patropi poderá ser candidato a prefeito — talvez do Rio de Janeiro ou de sua Ítaca, Glicério — ou a vereador. Com 78 anos. Terá saúde e apetite? Talvez. Como sugeriu o poeta e prosador mexicano Amado Nervo (1870-1919), “é mais fácil encontrar uma mulher resignada a envelhecer do que um político resignado a se retirar da cena”. (Daqui a 11 anos, em 2034, quando poderá disputar a Presidência da República pela terceira vez, o paulista-acariocado terá 80 anos. Não terá a mesma energia e viço dos tempos atuais, quiçá. O poderoso chefão do PL, Valdemar Costa Neto, que terá 85 anos, certamente dirá: “Vamos deixar o velhinho descansar”. Ele próprio, se vivo, certamente não vai querer se aposentar. Não se pode esquecer, é claro, do “velhinho” Getúlio Vargas, que voltou em 1950.)
Em oito anos, quase uma década, muda-se muita coisa. Um menino de 10 anos terá, oito anos depois, 18 anos — e será adulto, possivelmente estará na faculdade e poderá votar.
Bolsonaro, sem mandato, ainda que mantendo certa influência — notadamente na disputa eleitoral de 2024 e 2026 —, aos poucos, quem sabe, será esquecido. Poderá se tornar uma espécie de novo Roberto Jefferson, um homem do passado esbravejando no presente, mas sendo, é possível, visto como ridículo pelos políticos e eleitores.
Poucos políticos resistem tanto tempo fora da política. Sem mandato, é quase certo que até a grama da porta da casa de Bolsonaro ficará mais verde, por falta de pisoteio dos antigos visitantes, que eram frequentes. Até os filhos tendem, não a esquecê-lo, mas a buscar a opinião de outros líderes com mais poder e senso de realidade.

É possível que, aos poucos, Flávio Bolsonaro se torne o líder da família, porque parece o mais sensato e sereno. Ao contrário de Eduardo e Carlos Bolsonaro — mais ideológicos e midiáticos —, o senador não parece ter interesse por golpismo. Aprecia dinheiro, la dolce vitta, mas é, acima de tudo, pragmático.
Michele Bolsonaro é bonita, até articulada, mas fala para plateias conquistadas e, para ser presidente, é preciso ter contato com o Brazilzão geral e real. Os dois (ou mais) Brasis. Imagine a ex-primeira-dama circulando pelo Nordeste, em suas regiões mais pobres e inóspitas, em busca de votos. Não dá para imaginar.
Uma coisa é circular pela periferia de Brasília, ao lado da senadora Damares Alves, do Republicanos. O conforto, no caso, está a alguns quilômetros e minutos. No Nordestão do bom Deus, com aquele calor amigo de Dante, Michele Bolsonaro, com suas roupas bem cortadas (há uma chiqueza de Evita Perón, mas não de Maria Tereza Goulart), certamente não agradará e tampouco se entusiasmará com aqueles eleitores solícitos e, ao mesmo tempo, exigentes (e que preferem a simplicidade brejeira de Lula da Silva).

Bolsonaro, o caçador que virou caça
Bolsonaro merecia permanecer inelegível por oito anos? O objetivo foi retirá-lo da política talvez em caráter definitivo?
Mesmo antes de ser presidente, até por ser apologista da ditadura civil-militar de 1964 — seu modelo político (é admirador do linha dura Emilio Garrastazu Médici, do duríssimo general Miltinho Tavares e do coronel Brilhante Ustra) —, Bolsonaro nunca foi apóstolo da democracia. Pelo contrário, ideias e práticas autoritárias sempre o entusiasmaram.
Na Presidência, Bolsonaro tencionou com as instituições, atacando-as e aos seus membros, como os ministros do Supremo Alexandre de Moraes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso — magistrados de primeira linha —, de maneira antidemocrática. Porque uma coisa é a crítica, que tem caráter reparador ou corretivo; outra coisa é o ataque, que tem caráter destrutivo. Sobretudo quando se diz uma coisa para ser reverberada pelas ditas milícias digitais orientadas pelo tal “gabinete do ódio” (que era uma espécie de Ministério da Propaganda).

Adversários, mesmo quem nem era rival — um ministro do STF não deve ser visto como oponente político —, eram vistos e tratados, com extrema virulência verbal, como “inimigos”. Veja-se o caso de João Doria. Ele fez um governo de qualidade em São Paulo, foi decisivo para que os brasileiros fossem vacinados contra a Covid 19, mas teve sua reputação política devastada pela propagada bolsonarista — discípula, quem sabe, de Joseph Goebbels.
Então, se Bolsonaro “caçou” a democracia, tentando miná-la — inclusive pode estar por trás do golpismo pós-eleição de 2022, que desaguou no 8 de janeiro, quando as sedes das instituições (Congresso, Supremo e Presidência da República) foram invadidas e depredadas—, a democracia, via TSE, fez bem ao “cassá-lo”. Uma volta em 2026, talvez mais poderoso do que antes, poderia ser uma ameaça à democracia.
A inelegibilidade de Bolsonaro é legal e legítima. Os membros do TSE cumpriram a lei. E fizeram política? A realidade sugere que é impossível não fazer.

Justiça substituiu os eleitores, diz professor da USP/FGV
Estou entre os que aprovaram a decisão do TSE. Mesmo assim, não deixei de apreciar uma entrevista do cientista político Fernando Limongi, professor da Universidade de São Paulo e da Fundação Getúlio Vargas (FGC), à repórter Angela Pinho, da “Folha de S. Paulo (quinta-feira, 29).
Apesar de “detestar” Bolsonaro, Limongi não é entusiasta de sua inelegibilidade. “Se um político cometeu um crime, foi julgado e condenado, e este crime prevê que ele perca os direitos políticos, ok, o Judiciário está cumprindo a sua função. Mas, se o político está sendo processado, porque se pretende que ele perca o mandato, aí não é ok.”
Na conversa com os embaixadores, quando Bolsonaro, presidente, ataca o sistema eleitoral — sugerindo, até, que pode burlá-lo (o golpismo), dada sua desconfiança —, há “um crime”, frisa Limongi. “Mas não é assim que a coisa está sendo justificada. Essa mesma consequência poderia ocorrer normalmente por causa das joias [recebidas da Arábia Saudita e barradas pela Receita Federal]. Ali há muito mais evidência de um crime cometido que deve acarretar como consequência a perda de um mandato.”
Limongi critica a “pressa” do TSE. A entrevista foi concedida antes do término do julgamento, por isso o cientista político assinala: “Se for para retirar os direitos políticos do Bolsonaro, tem que ser algo muito sólido e bem fundamentado para que não fique uma pecha de que foi uma vingança política ou uma partidarização do Judiciário. O Judiciário não está tomando esse cuidado. Isso acaba tirando a legitimidade desse tipo de ação”.

O cientista político sublinha que “o verdadeiro soberano é o eleitor, não o judiciário. No caso de Lula da Silva, claramente o Judiciário se achou no direito e no dever de impedir que ele voltasse à Presidência. Considerou que era um risco e precisava proteger o povo. Só que na democracia esse é o papel do eleitor. No caso de Bolsonaro, se ele comete um crime, ele é como todo cidadão diante da lei, mas não se pode fazer um julgamento por motivações políticas. É preciso muito cuidado para que não passe a ideia de que o Judiciário está sendo instrumentalizado. É preferível ter Bolsonaro num mercado eleitoral e ele ser derrotado eleitoralmente do que juízes tomarem essa posição”.
Limongi diz que o Judiciário deve tomar cuidado para não se comportar como um “poder moderador”, assumindo “o papel que é do eleitor”.
O autor do livro “Operação Impeachment — Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato” (Todavia, 304 páginas) enfatiza que, “no caso de Bolsonaro, se está agindo no caso particular e não normatizando o geral. É preciso deixar muito claro qual crime ele cometeu. Todo mundo que falar contra as urnas não vai poder ser mais eleito? O PSDB falou, o PSDB entrou com um pedido de auditoria das urnas em 2014”.
Porém, ressalve-se, o PSDB, ao contrário de Bolsonaro, não era e não é golpista. O deputado federal Aécio Neves pode ter seus defeitos, mas é democrata.
Sobre o Supremo Tribunal Federal, Limongi destaca “que se deve prezar é a questão institucional, que o Supremo volte a usar com moderação seu poder e a pensar o seu papel institucional e não o papel de cada um dos 11 dos membros”.
As questões apontadas por Fernando Limongi são sérias, mas hoje os democratas — e não apenas petistas, comunistas e pedetistas etc — se sentem mais confortáveis com a inelegibilidade de Bolsonaro. Ter paz — alguma paz —, por oito anos, já é alguma coisa, quiçá muita cousa.
Jair Bolsonaro pode disputar eleição em 2030?

A reportagem “Diferença de datas pode permitir que Bolsonaro seja candidato em 2030”, das jornalistas Manoela Alcântara e Júlia Portela, do Metrópoles (sexta-feira, 30), aponta para uma questão ainda pouco discutida.
“Como a penalidade começa a contar a partir da data do pleito em que foram constatados o abuso de poder político e o uso indevido dos meios de comunicação, a dúvida é se o ex-presidente estaria apto a participar por quatro dias de diferença”, assinala o portal Metrópoles.
“Em 2022, o primeiro turno das eleições ocorreu no dia 2 de outubro. Em 2030, o pleito será no dia 6. Assim, o questionamento é a esses quatro dias de diferença o tornariam apto a ter o registro deferido pela Justiça Eleitoral”, reportam as jornalistas.
“Fontes de tribunais superiores ouvidas pelo Metrópoles avaliam que o TSE ainda pode discutir o assunto. Também há possibilidade de a data constar no acórdão da decisão, justamente pela imprecisão da lei. Advogados e alguns ministros, no entanto, pensam que vale a jurisprudência e, com isso, a inelegibilidade acabaria em 2 de outubro de 2030. Portanto, antes do primeiro turno do pleito”, acrescenta o portal.
Mesmo não sendo jurista, avalio que, no entendimento do TSE, Bolsonaro estará inelegível até o pleito de 2030. Portanto, possivelmente, só poderá disputar eleição a partir de 2032.
Especialista em legislação eleitoral, o advogado Danúbio Cardoso afirma: “A lei diz que não pode ser candidato em 2030. Mas a jurisprudência postula que pode. Porém, se Bolsonaro for condenado pelos crimes do 8 de janeiro, a inelegibilidade avança oito anos após o cumprimento da pena”. Portanto, a situação do ex-presidente pode se agravar.