O nazista estava incógnito na Argentina? “Eichmann nunca quis, nem mesmo como fugitivo, a obscuridade. Queria ser visto na Argentina como o símbolo de uma nova era”

O Adolf Eichmann que foi julgado, condenado à morte em Israel e dissecado no livro “Eichmann em Jerusalém — Um Relato Sobre a Banalidade do Mal” (Companhia das Letras, 344 páginas, tradução de José Rubens Siqueira), da filósofa alemã Hannah Arendt, pode ter sido um personagem habilmente construído para tentar salvá-lo? É provável. O nazista, aliado de Heinrich Himmler, tinha o hábito, por assim dizer, de construir personagens (ou personalidades), adaptando-se aos ambientes. Hannah Arendt, na sua excelente e problemática obra, pode ter capturado, até à perfeição, “um” Eichmann, mas os “outros”, aparentemente, escaparam-lhe. Ao condenar Eichmann à morte, o tribunal israelense pode, compreendendo ou não o homem complexo e dissimulado, ter acertado mais do que a filósofa judia.

“Adolf Eichmann — Historia de un Asesino de Masas” (Edhasa, 642 páginas, tradução de Silvia Villegas), de Bettina Stangneth, de 48 anos, é um livro extraordinário (inédito em português). Seu objetivo não é demolir a obra de Arendt, que a autora admira, especialmente pela coragem e inteligência da argumentação. Pelo contrário, quer ampliar sua compreensão sobre quem era Eichmann.

Doutora em Filosofia com uma tese sobre Kant, a alemã Bettina procura entender e explicar Eichmann antes do fuzuê de Jerusalém. “Há uma perspectiva [sobre o nazista] que, em sua maior parte, permanece inexplorada: a esfera pública. Falta verificar o ‘fenômeno Eichmann’ antes de Jerusalém e, em consequência, a imagem de Eichmann nas diferentes etapas de sua vida.” Arendt não tinha como ter uma visão nuançada de Eichmann, porque em 1961, durante o julgamento, havia pouca documentação de qualidade sobre o nazista. Bettina afirma que agora há um “excepcional conjunto de fontes”. “Existem mais documentos, testemunhos pessoais e relatos de testemunhas da época referentes a Eichmann do que sobre todos os demais líderes nazistas.”

Adolf Eichmann: julgamento em Jerusalém | Foto: Reprodução

“Eichmann concebeu uma nova versão de si mesmo em cada etapa de sua vida, segundo o público e os fins que motivavam suas ações”, escreve Bettina. Na Argentina, ele escrevia e lia muito. À margem dos livros, fazia anotações críticas, às vezes irritadas. Os “Argentien-Papiere” são os textos do próprio Eichamm, escritos no exílio. Ele concedeu entrevistas a Willem Sassen (“Entrevistas Sassen”).e, assim, causar o mesmo impacto que já havia causado anteriormente. (…) Eichmann não era um pária na Argentina”.

Na Argentina, Eichmann mantinha contatos com outros nazistas. Os nazistas “elaboraram planos subversivos, construíram com esmero uma rede de simpatizantes, se dedicaram inclusive a falsificar documentos com o objetivo de defender sua visão do ‘glorioso’ nacional-socialismo das críticas e evidências, e Adolf Eichmann era uma figura central entre eles. Era seguro de si mesmo, comprometido e consultado como especialista respeitado devido aos milhões de assassinatos, como quando era assessor da Reichssicher­heit­shauptamt [Escritório Central de Segurança do Reich]. ‘Eichmann na Argentina’ não é, portanto, uma peça unipessoal, e sim a crônica da surpreendente segunda carreira de um tenente-coronel aposentado das SS: sua carreira como especialista em história e, uma vez mais, expert na ‘questão judaica’”.

Perspicaz, Eichmann construiu, posteriormente, a imagem de que estava totalmente escondido, isolado e afastado das lides políticas na Argentina. A história fantástica e heroica do sequestro executado pelo Mossad, sugerindo que foi uma operação mais complexa do que realmente foi, colaborou para o mito de que ele não tinha importância, de que não articulava e não se movimentada. “Eichmann nunca quis ser o inofensivo e pacífico Ricardo Klement, exceto quando ocupou sua cela na prisão de Israel. Na Argentina, assinava orgulhosamente as dedicatórias das fotos para seus camaradas como ‘Adolf Eichmann, tenente-coronel aposentado das SS’”, registra Bettina.

Ao ler cuidadosamente as atas dos interrogatórios do nazista em Jerusalém, Arendt pode ter caído numa “armadilha” preparada meticulosamente pelo esperto nazista. “Ninguém leu as atas dos interrogatórios e o julgamento com tanto detalhamento. Mas foi assim que [Arendt] caiu na armadilha, porque Eichmann em Jerusalém não foi mais do que uma máscara. E se não logrou dar-se conta, era sumamente consciente de que ainda não havia compreendido o fenômeno como gostaria”, anota Bettina. Talvez seja possível dizer que Arendt compreendeu o Eichmann exibido por Eichmann, mas não o nazista muito mais complexo do que um mero funcionário administrativo, um cumpridor de ordens, quase uma besta quadrada.

Bettina diz que é preciso admitir que mesmo pessoas sem inteligência extraordinária podem chefiar pessoas muito mais dotadas e, ao mesmo tempo, “enganar” magistrados, procuradores, jornalistas e filósofos muito bem preparados. Em Jerusalém, Eichmann, por vias indiretas, esculpiu com certa precisão a imagem de que era um funcionário do segundo escalão. “Só ante a Justiça de Jerusalém tentou aparecer como um funcionário menor, subalterno e substituível, sem nome e sem rosto. (…) Há numerosos indícios de que a partir de 1938 Eichmann não era um desconhecido nem lhe interessava ocupar um lugar nas sombras. Quando começamos a seguir esses indícios, aparece a clara imagem do homem que urdiu uma trama criminosa.” Eichmann não era Hitler, Him­mler, Göring ou Goebbels, mas foi uma figura importante na política — tida como parte central do ideário nazista — de extermínio dos judeus. Menor talvez seja a interpretação que fizeram de seu papel na história a partir do que relatou em Jerusalém, quando se tornou um culpado-quase vítima do nazismo.