Biografia revela que Strindberg, o Shakespeare da Suécia, não era louco e valorizou as mulheres
16 abril 2016 às 10h58
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Auguste Strindberg (1849-1912) é o William Shakespeare da Suécia. Mas, ao contrário do britânico, não caiu nas graças das editoras patropis. Alguns de seus livros saíram no Brasil, mas, fora as edições da Hedra, a maioria só pode ser adquirida em sebos. Podem ser encontrados, sobretudo no site Estante Virtual, “Inferno” (Nova Fronteira e Max Limonad), “Gente de Hemso” (Hedra, Portugália, Europa-América), “A Dança da Morte” (Abril Cultural e Veredas), “Senhorita Júlia e a Mais Forte” (Ediouro), “Crimes e Crimes” (Edusp), “Sagas” (Hedra), “Senhorita Júlia e Outras Peças” (Global e Hedra), “Pai” (Peixoto Neto), “Tempestade — A Casa Queimada — A Menina Júlia” (Presença). Parece muito. Mas é muito pouco, dada a imensa produção do dramaturgo. Sobre o múltiplo escritor há dois clichês básicos: “louco” e “genial”.
Genial, sim. Louco, não. O jornalista espanhol e editor de livros Jordi Guinart aprendeu sueco, estudou sua obra e sua vida a fundo, durante quase uma década, e escreveu uma biografia para desfazer alguns enganos: “Strindberg — Desde el Infierno” (Funambulista, 400 páginas).
Numa resenha para o jornal espanhol “El Mundo”, publicada no início do mês, Javier Blánquez diz que muito se escreveu sobre Strindberg, mas “não se sabe tudo sobre” o escritor. Como explorou sua própria vida, detalhando-a em suas histórias, tende-se a ver sua obra como parcialmente autobiográfica. Mesmo assim, com os fatos bem documentados, “Strindberg engana”, afirma Jordi Guinart. “As novelas não são a realidade. Strindberg fazia literatura a partir de sua vida, mas não estava contando sua vida real”, anota o biógrafo. Não era um jornalista, digamos, e sim um criador literário. Ficção e realidade são irmanados em seus livros, imbrincadas por sua poderosa imaginação.
Para entender um autor complexo e altamente produtivo como Strindberg, é preciso apaixonar-se pelo autor e por sua obra. É o que aconteceu com Jordi Guinart. A paixão começou com “Inferno”, considerada sua obra mais importante. A obra do autor está reunida, na Suécia, em mais de 75 volumes — excluindo a correspondência. “‘Inferno’ é a crônica literária dos anos mais obscuros de Strinberg em Paris, de sua obsessão pelo ocultismo, pela alquimia e pelo monismo.”
A paixão por Strindberg é tanta que Jordi Guinart diz que é como estivesse enfeitiçado tanto pelo homem quanto pela obra. “Com Strindberg é assim: o leitor fica fascinado, mesmerizado, ou então não se gosta em absoluto”, assinala o biógrafo. O autor da obra diz que visitou a Suécia, andou pelos lugares onde o autor morou, circulou e dos quais falou. Ele leu passagens de seus livros exatamente nos locais comentados por Strindberg. “Senti que ele me falava diretamente.” A obra do sueco agarra o leitor e não solta — exigindo-lhe um amor próximo do desespero.
O escritor Karl Ove Knausgård, autor do livros “A Morte do Pai” e “A Ilha da Infância”, ambos editados pela Companhia das Letras, é, segundo Jordi Guinart, “herdeiro de Strindberg”. Mas o sueco é mais “impudico” do que o norueguês. Strindberg “explica coisas sobre si mesmo que era impensável imaginá-las no século 19”. Estava à frente de seu tempo. “A cultura do egocentrismo e a obsessão pelo eu nascem em boa parte com o dramaturgo. A maioria de suas fotografias foi feita por ele mesmo. Tecnicamente, são selfies.”
Depois de estudar a obra de Strindberg por nove anos, vasculhando-a de ponta a ponta, Jordi Guinart percebeu que não havia nenhuma biografia decente ou indecente em espanhol. O jornalista afirma que as traduções para a língua de seu país têm sido feitas a partir do francês e do alemão. A tradução de “Inferno”, a partir do francês, é incompleta. A Editora Acantilado traduziu o livro do sueco, sem cortes.
A personalidade vulcânica de Strindberg, além do fato de ser um autor prolífico, atraiu Jordi Guinart, que decidiu estudá-lo de maneira detida. Ele trata seu estudo como “uma biografia de iniciação” — para abrir o “apetite” —, um convite para o leitor compreender tanto o dramaturgo quanto sua obra. “A principal complicação não foi a pesquisa e escrever o livro, mas tomar a decisão do que incluir e do que excluir. Há um excesso de informação sobre Strindberg”, afirma.
Strindberg teve uma vida turbulenta — eis um consenso. A questão mais polêmica é a história de sua “loucura”. Jávier Blánquez diz que “geralmente se fala do dramaturgo como um ‘demente’, como alguém que, em determinado momento de sua vida, perdeu o controle de si”, tornando-se alheio à realidade. “Mas os psiquiatras com os quais tenho conversado asseguram que quatro meses, o tempo que durou a crise que o levou a escrever ‘Inferno’, não são suficientes para determinar que era louco. Suas crises foram recorrentes, o desestabilizaram, mas não era loucura”, afirma Jordi Guinart. Por certo, era melancolia ou, quem sabe, depressão circunstancial.
As crises de Strindberg eram resultados, sugere Jordi Guinart, de “conflitos matrimoniais, falta de recursos financeiros, fracassos das estreias e encenações de suas peças e desapareço do público” — que, por vezes, não entendia seu arrojo artístico e modernidade. Seus variados problemas são apontados pelo biógrafo como causa de sua misoginia. Seus ataques gratuitos e rasteiros eram dirigidos a rivais e às suas ex-mulheres.
“Na realidade”, ressalta Jordi Guinart, Strindberg “não atacava as mulheres, e sim suas ex-mulheres e, por meio delas, um certo modelo de mulher: a senhora burguesa sueca acomodada e sem um ofício” e que, por isso, precisava ser sustentada e “não fazia outra coisa a não ser queixar-se”.
Strindberg “admirava os pobres. De certo ponto de vista, foi um feminista ao inverso. Sua linguagem hoje nos choca, porque estamos em um momento de extrema correção, e não se pode negar que, durante certo período de sua vida, seu comportamento e seus textos foram misóginos. Porém ele falava da mulher trabalhadora, apoiou e cobrou o voto feminino”. O dramaturgo “incentivava as mulheres a trabalhar” e a “crescer por intermédio de suas carreiras profissionais”.
Comenta-se que Strindberg era um perverso sexual. “Construíram um personagem impudico, que confundia realidade com desejo. Mas era lógico: o sexo, para ele, era parte humano e parte divino.”
Não há notícia de que o livro será editado no Brasil.