Paulo Roberto Pires, que vai lançar o livro pela Editora Todavia, pesquisa a vida do filósofo do humor desde 2013

Millôr Fernandes: filósofo do humor que fez a cabeça do Brasil durante anos

O Brasil, como outros países, é um celeiro de humoristas. Mas é um dos poucos países que produziu um humorista que se tornou filósofo do humor. Trata-se de Millôr Fernandes, que brilhou na “Veja” e no “Jornal do Brasil” e em livros. Traduziu, muito bem, parte da obra de Shakespeare — dando-lhe um vigor renovado. Fica-se com a impressão que, nas suas versões, aqui e ali, o bardo britânico fica mais vívido.

Millôr Fernandes criança

Millôr Fernandes militou, esporadicamente, como crítico literário, sendo um dos primeiros a publicar comentários sugerindo que o português José Saramago era um grande escritor (José J. Veiga, o prosador, também escreveu a respeito do colega lusitano). “Descobriu” a extraordinária romancista Ana Maria Gonçalves, autora do romance “Um Defeito de Cor”, de 2006. Escreveu uma crítica corrosiva à literatura do ex-presidente José Sarney. Disse que, quando o maranhense escreve, a Língua Portuguesa grita… de dor. O frasista admirável, uma espécie de Karl Kraus dos trópicos, pode ser conferido no livro “Millôr Definitivo — A Bíblia do Caos”. Vale lembrar que brilhou no “Pasquim”, ao lado de Ziraldo, Jaguar, Paulo Francis e Tarso de Castro.

Paulo Roberto Pires: biógrafo de Jorge Zahar e, agora, de Millôr Fernandes

Millôr Fernandes era (é) grande em várias coisas, mas sua criação mais notável é o mesmo o humor, de uma finura rara, e sem nenhum grosseria. Era sutil. Era inteligente. Era divertido.

Millôr Fernandes morreu aos 88 anos, em 2012, e, se fosse americano, já teria sido biografado, tal sua importância, pelo menos cinco vezes. Fernando Morais e Ruy Castro, dois biógrafos de primeira linha, são nomes adequados para explicar o homem, o criador e a obra. Como estão focados em outros projetos, o jornalista, crítico literário e professor universitário Paulo Roberto Pires decidiu biografá-lo e, segundo Maurício Meireles, da “Folha de S, Paulo”, o livro sairá em 2020 pela Editora Todavia. Vamos esperar — roendo as unhas, é claro.

Millôr Fernandes, Ariano Suassuna e Luis Fernando Verissimo

Paulo Roberto Pires acaba de colocar nas livrarias uma biografia de Jorge Zahar (“A Marca do Z — A Vida e os Tempos do Editor Jorge Zahar”), o criador da Editora Zahar e amigo de Millôr Fernandes. Jorge Zahar, apesar de sua importância como editor, parece que não teve uma vida tão movimentada quanto a de Millôr Fernandes, que já começa pelo nome, que era para ser Milton, mas o cartorário errou e ficou, para sempre, Millôr. O biógrafo pesquisa sua vida desde 1913.

O humorista era encrenqueiro? Não se sabe. No “Pasquim”, não dava muito certo com, por exemplo, Tarso de Castro. Talvez porque não tolerasse a liberdade do jornalista gaúcho. Talvez, como todos os outros, tivesse uma certa inveja: Tarso de Castro saía com algumas das mulheres mais bonitas do país e até do exterior (a atriz Candice Bergen ficou mesmerizada pelo jornalista tropicaliente).

Procede que Millôr Fernandes era um latin lover? Consta que sim, mas não se sabe direito (caberá ao biógrafo, mesmo que não seja mexeriqueiro, revelar suas passagens pelos lençóis próprios e alheios). Nos últimos de sua vida, manteve um relacionamento estável com a jornalista Cora Rónai, filha do tradutor, crítico e escritor Paulo Rónai.

O que se sabe mesmo é que Millôr Fernandes, como humorista e profissional, era de uma independência ímpar. Quando editores e proprietários queriam dirigir seu humor, ou impedir que seu humor fluísse livremente — ou mesmo quando queriam impedir seu engajamento político pró-Brizola, como na revista “Veja” —, pedia o boné e não dava a mínima importância.

Millôr Fernandes e sua paixão, a jornalista Cora Rónai

Quando deixou a “Veja”, a revista, claro, não faliu, mas ficou mais pobre. Eu, como muitos leitores, antes de ler as notícias ditas sérias — há algo mais sério do que o humor — dava uma passada pela página “do” Millôr. Lá, assim como no quadradinho do “Jornal do Brasil” (escreveu aí um texto textinho antológico sobre um diplomata que criticara uma de suas traduções de Shakespeare, no qual disse que “não se deve ampliar a voz dos idiotas), escreveu textos notáveis, e, por certo, fez escola. Pode-se sustentar que, em termos de humor, quase todos os humoristas patropis, notadamente os mais sofisticados, são “filhos” do Millôr.