É provável que, com as emoções das redescobertas assentadas, a escritora seja vista mais como fenômeno sociocultural e menos como fenômeno literário

Clarice Lispector e Carolina de Jesus: diamantes da cultura brasileira, a primeira lapidadíssima; a segunda, nem tanto

Jan Niklas, de “O Globo”, no texto “Nova biografia de Carolina de Jesus tenta afastá-la do estereótipo de ‘escritora de favela’” (quarta-feira, 14), discute uma escritora que, no seu auge, vendia praticamente como Paulo Coelho. “Quarto de Despelo” vendeu 10 mil exemplares logo que foi lançado e mais de 300 mil exemplares. O livro “foi um dos dez mais vendidos de 2017 no site Estante Virtual”. Sua obra ganhou tradução em 14 idiomas e foi editada em 40 países. Ela escreveu também “Casa de Alvenaria” e “Pedaços de Fome”. Seus livros são disputados quase a tapa em livrarias e, sobretudo, sebos.

“Carolina — Uma Biografia” (Malê, 402 páginas), do jornalista e crítico literário Tom Farias, não é uma hagiografia, tudo indica, e sim o resgate, com novas informações, de uma escritora que é, ao mesmo tempo, superestimada, agora pela universidade, e subestimada. Há um viés equivocado, se feito: o de compará-la a luminares, como Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Rachel de Queiroz. Não se deve, por outro lado, folclorizá-la nem transformá-la numa intelectual do porte de Antonio Candido e Roberto Schwarz (“O Globo” a trata como “intelectual”, só faltou adjetivá-la de “brilhante”, palavra que está na moda, em geral na boca de néscios).

Carolina de Jesus (1914-1977) começa a ser estudada de maneira detida pela universidade, o que, a médio prazo, permitirá que se tenha uma compreensão mais ampla de sua obra — que precisa ser vista como literatura (mais, na minha opinião) e menos como uma espécie de “manifesto” (opinião que, não sendo a minha, respeito). Ao escrever o livro, Tom Farias frisa que sua “intenção era quebrar estereótipos e paradigmas que até hoje acompanham Carolina e sua obra. A visão que se tem hoje da Carolina não é de uma escritora, mas de uma pobre negra e moradora da favela que escrevia livros. Mas Carolina morou apenas alguns anos da vida dela na favela e, a todo momento, demonstra estar de costas para esse espaço, que é alvo de suas mais duras críticas. Tanto que ao deixá-lo foi xingada e apedrejada pelos moradores”.

Um contraponto ao que disse Tom Farias ao “Globo” é o livro “Cinderela Negra — A Saga de Carolina Maria de Jesus”, dos scholars brasileiro Jose Carlos Sebe Bom Meihy e americano Robert M. Levine. Os dois pesquisadores não tratam Carolina de Jesus como “uma pobre negra e moradora da favela que escrevia livros”. São, a um só tempo, rigorosos e respeitosos.

Tom Farias diz que Carolina de Jesus morou no Rio de Janeiro, durante dois anos. “Uma descoberta que nem mesmo a família da autora conhecia”, afirma “O Globo”, a partir do registro do biógrafo. “Carolina escreveu dramas, romances, contos, provérbios e poesias, e letras de música também. Dizia malandros tinham roubado algumas dessas poesias e musicado sem creditar a autora”, relata o pesquisador.

No auge da fama, Carolina de Jesus conviveu com alguns ricos (como os Suplicy) de São Paulo e chegou a frequentar suas casas. “O presidente do Uruguai mandou parar tudo durante sua visita, e Pablo Neruda dedicou-lhe um poema (hoje perdido).”

Com o fim da fama, Carolina de Jesus passou a ser considerada “louca”. “Mesmo sem necessitar, ela chegou a voltar a catar papel nas ruas só para chamar a atenção da mídia”, afirma Tom Farias. Mas, anota “O Globo”, “não chegou a passar fome, pois havia comprado um sítio grande onde plantava e criava animais”.

“Carolina nunca foi tratada como uma mulher inteligente e à frente do seu tempo”, lamenta Tom Farias. “O aspecto da pobreza, da favela, da falta de estudos chamou mais a atenção como produto midiático, de puro marketing. Causou também ‘ciumeira’ na ‘classe’ literária, muito elitizada: o boicote a Carolina foi feio, sem sentido, colonial e assustador.”

É provável que, com as emoções das “redescobertas” assentadas, Carolina de Jesus seja tratada mais como um fenômeno sociocultural — o que, de fato, é — e um pouco menos como um fenômeno literário (e, a rigor, não estou dizendo que não se trata de um fenômeno também literário). Não se trata de alta literatura, mas é significativa e, quem sabe, deve ser vista como contendo uma pegada antropológica.