Biden sugere que investimento do Estado, gerando dívidas, pode ser o caminho para o crescimento

04 abril 2021 às 00h00

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O presidente americano planeja investir 3 trilhões de dólares em infraestrutura para os Estados Unidos voltarem a crescer. Já Bolsonaro não tem um plano amplo
“As pessoas pagam pelo que fazem e, ainda mais, pelo que se permitiram se tornar. E pagam de um modo bem simples: com a vida que levam.” — James Baldwin
Sob crise, o Estado tem de gastar mais tanto para garantir relativa qualidade de vida para os mais pobres e, ao mesmo tempo, manter as empresas abertas? Hoje, depois de um longo primado das ideias liberais, nem mesmo os liberais são mais tão radicais. O Estado, que parecia démodé — a revista “Veja”, panglossianamente, passou a escrever Estado com letra minúscula, para demonstrar sua “nenhuma” importância —, espécie de demônio do atraso, voltou a ser “cultivado” por todos, ou, vá lá, quase todos. Pode-se sugerir que, sem o Estado, não há salvação para ninguém — nem mesmo para a iniciativa privada. Em períodos de crise aguda, as empresas reduzem seus investimentos, até para sobreviver, e então resta ao Estado, arrancando dinheiro da sociedade, fazer os investimentos necessários, basicamente em infraestrutura, em empréstimos para as empresas e bancando, no limite de suas possibilidades, as necessidades fundamentais dos pobres, como recursos para alimentação.
Nos Estados Unidos, em tese uma das pátrias modernas do liberalismo, há dois partidos políticos dominantes, o Democrata e o Republicando. O primeiro é tido como mais gastador. O segundo seria menos gastador. Mas o que o Estado deve fazer durante a crise econômica gerada ou potencializada pela pandemia do novo coronavírus? Deixar os pobres morrerem de fome e as empresas fecharem as portas?

A revista “The Economist” publicou um texto, sob o título de “Por que Biden não tem mais medo de dívidas?”, traduzido e publicado pelo jornal “O Estado de S. Paulo” na quinta-feira, 1º.
“Hoje, com os gastos nas alturas e a economia trôpega, os Estados Unidos ostentam uma dívida pública acima dos 27 trilhões, representando cerca de 130% do PIB. O déficit do governo federal no ano passado triplicou, para mais de 3 trilhões”, frisa “Economist”. Alguns economistas, quando leem isto, querem voltar, rapidamente, para o “armário da responsabilidade”. Entretanto, com a China na sua cola, investindo para chegar mais perto e tentar superar os Steites, o presidente Joe Biden decidiu que o caminho mais rápido para o sucesso econômico é investir recursos financeiros do Estado na economia.
Biden pretende injetar, com seu plano de investimento em infraestrutura, cerca de 3 trilhões de dólares na economia. Parece plano do Estado chinês — que investe pesado na “sustentabilidade” global de sua economia, o que permite crescimento econômico acima de 6%. Noutras palavras, o país de Xi Jinping torra dinheiro público, em grandes quantidades, para manter a economia saudável — o que nem sempre ocorre em economias capitalistas. Numa democracia, como a americana, o Legislativo pode barrar o desejo de gastar do Executivo. Mas, ante uma crise como a atual, que retira empregos, ampliando a miséria — há cerca de 46 milhões de pobres nos Estados Unidos (15% da população) —, poucos parlamentares vão ser contrários à ampliação dos gastos públicos. No caso, o gasto não é para financiar o próprio Estado, e sim para reerguer a economia, o que beneficiará todos, em tese.
Segundo “Economist”, “Biden tem o povo ao seu lado. Pesquisas relatam um forte apoio aos gastos com estímulos e sua pouca preocupação com a dívida. Na última pesquisa Gallup, somente 3% dos entrevistados citaram a dívida ou o déficit como o problema mais importante do país”.
“Políticos progressistas são favoráveis a aumentar impostos para diminuir a desigualdade de renda, e Biden, segundo relatos, está considerando aumentar impostos para compensar o custo de seu plano de infraestrutura, incluindo aumentos de impostos para empresas e para os indivíduos mais ricos. Mas mudanças desse tipo certamente serão combatidas pelos republicanos e dificilmente financiarão todo o plano. Apoiadores de Biden argumentam que investimentos em infraestrutura pagarão a própria conta com o tempo, por meio do crescimento”, assinala “Economist”.
O quadro da depressão na década de 1930, no governo de Franklin D. Roosevelt, evidentemente é diferente do atual. O governo de Roosevelt, com o New Deal, só conseguiu arrancar o país da crise com alto investimento em infraestrutura, nas empresas e em criação de empregos. Em tempos difíceis, as regras liberais não são muito eficazes. Se aplicadas de maneira rigorosa, acabam por gerar mais crise e sofrimento das pessoas, notadamente das mais pobres. Por isso é provável que Biden esteja certo. O Estado investindo forte, e com preocupação social, pode acabar induzindo ao crescimento e ao desenvolvimento. O que se está dizendo não é o mesmo que expõe “Economist” — que apresenta também os riscos da gastança.
Vale insistir que, com a atividade econômica comprimida, muitas empresas não têm condições de investir — restando, portanto, ao Estado levar a economia à frente. Para um liberal ortodoxo, isto chega a ser um “crime”. Mas a economia real, quando em crise, sobretudo uma grande crise, como a atual, exige um Estado investidor, o que não é o mesmo que um Estado-empresário. Não se quer ampliar o Estado, e sim usar recursos disponíveis no setor público para recuperar a sociedade e, nesta, as empresas. E, ao mesmo tempo, manter a dignidade das pessoas — gerando empregos e, nos casos extremos, sustentando-as pelo tempo que for necessário.
Guedes é liberal e Bolsonaro é um estatista

Embora tenha um ministro da Economia liberal, Paulo Guedes, o presidente Jair Bolsonaro nada tem de liberal — é um nacionalista-populista de direita. O Posto Ipiranga-tabajarizado quer enxugar o Banco do Brasil e, se possível, privatizá-lo. Bolsonaro tencionou até o presidente do BB, do grupo do ministro, pedir demissão. Talvez por ser político, Bolsonaro tem mais preocupações sociais que o chicago-old. O discípulo de Milton Friedman quer vacinar as pessoas com o objetivo de recuperar a economia — o que é justo. Mas a questão humanitária deve se sobrepor ao economicismo.
Bolsonaro criou um programa emergencial para atender os pobres — o que é positivo. Mas o presidente não tem a visão de Biden para criar um plano mais amplo de recuperação da economia. O mais provável é que, como só lhe resta um e nove meses de governo, vai levar com a “barriga” — cortando gastos públicos (não como quer Paulo Guedes) e investindo no social para tentar ser reeleito.
Paulo Guedes é centrado, mas não é um estadista. Sugere que pode “consertar” o Estado brasileiro, com cortes de gastos públicos drásticos e privatizações, num tempo recorde. Mas o setor público não funciona sob a mesma dinâmica da iniciativa privada — tudo é mais lento. O mundo pode ser melhorado, mas talvez não “consertado”. Bolsonaro e seu Posto Ipiranga parecem, por vezes, seres messiânicos — desses que acreditam na redenção do homem. Deveriam observar o que Biden está fazendo. Uma das funções do Estado talvez seja esta mesmo: gerar dívidas… para beneficiar a sociedade.
Abaixo confira o link para o texto da “Economist” (a tradução é de Augusto Calil). As conclusões da revista não são equivalentes às apresentadas acima. A publicação britânica não discute, por exemplo, a situação brasileira.