Biden “ataca” repórter que cobrou que dissesse a verdade sobre Vladimir Putin
20 junho 2021 às 00h00
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O presidente dos Estados Unidos pediu desculpas à jornalista da CNN, que não quis ser o sorriso do poder
No romance “Os Mímicos” (Companhia das Letras, 319 páginas, tradução de Paulo Henriques Britto), o escritor V. S. Naipaul escreve: “Apenas o poder revela o político” (página 46). De fato, na oposição, o político tende à santidade. E, ante a presença de “monstros” — como Donald Trump e Jair Bolsonaro (a exacerbação dos defeitos deles nos “melhora”, quiçá. Naipaul, na página 126: “Um homem era apenas aquilo que via de si nos outros”) —, precisamos de santos redentores, como Joe Biden e Lula da Silva.
Biden é um político liberal, que, ante os problemas dos Estados Unidos — inclusive a miserabilidade de 46 milhões de seus compatriotas (15% da população, segundo o Censo) —, adquiriu, ante o olhar do mundo, ares de socialdemocrata, o que, em definitivo, não é. Mas o presidente americano está mesmo certo: o Estado deve “proteger” os que não têm “proteção” alguma ou tem escassa “proteção”. E, por incrível que pareça, se se pensa como um liberal, a recuperação da economia depende, em larga escala, do Estado — que, ao contrário da livre iniciativa, pode investir a fundo perdido. Do Estado não se deve exigir que tenha retorno financeiro, porque seu retorno, quando há, é fundamentalmente social. Como Franklin D. Roosevelt — e o grande Harry Hopkins, um dos principais auxiliares do presidente americano na formulação do New Deal, na década de 1930 —, Biden percebeu que a era do Estado indutor ainda não acabou, e talvez não acabe nunca, pois crises do capitalismo, cíclicas ou não, sempre existirão.
Como político, sobretudo como presidente de um país como os Estados Unidos — o mais rico e poderoso da Terra —, Biden é um realista. Muito do que gostaria de fazer, avançando em algumas questões, como pressionar mais a Rússia, uma potência nuclear, não tem como fazer. Sua retórica é diferente da de Trump — que, em tese, se “agachava” para o presidente da Rússia, Vladímir Putin — e a prática talvez também acabe por ser. Porém, como líder de um império — cujo principal rival não é a Rússia, e sim a China, que está “chegando” forte para tentar superar o país de Milton Friedman —, tende, ao menos em alguns questões e momentos, a ser intransigente. Ser duro, com atos e menos palavras, parece fácil, considerando que Biden comanda um gigante econômico e muito bem armado, mas não é.
Biden pode até pensar como um cidadão comum, mas, como homem de Estado, tem de agir de acordo com os interesses de seu país. Portanto, Biden, o santo que estão vendo (e até “adorando”), “não” tem como, a todo momento, corresponder à imagem que se está forjando dele. Ninguém é santo — nem os santos o foram. A política, em certo nível de poder, recria os homens, que se tornam às vezes “santos”, às vezes demônios; não raro, apenas homens, com virtudes, defeitos e ambiguidades.
Na semana passada, a imagem de santo político de Biden quase caiu por terra. Ao ser interpelado pela repórter Kaitlan Collins, da CNN — a americana, claro; a brasileira está se tornando o “sorriso do poder” —, o presidente reagiu de maneira grosseira.
Kaitlan Collins quis saber por qual razão Biden, depois de uma reunião com o presidente russo, passara a acreditar “na mudança de comportamento de Putin”. O presidente negou confiar, com razão, no gestor da terra de Púchkin e Anna Ahkmátova. Porque só um néscio, em política internacional, acreditaria que o líder russo mudará de posição. Há 20 anos no poder, o micro Stálin, dirigente de uma democradura, só muda suas ideias quando as velhas não lhe servem mais.
A ressalva é que não existe política internacional, em nível de dirigentes, em especial dos países poderosos, sem certa hipocrisia. Dizer a verdade, em sua integralidade, não é, por vezes, inteligente (“A verdade há de deslumbrar aos poucos/Os homens — p’ra não cegá-los”, escreveu a poeta americana Emily Dickinson, em tradução de Aíla de Oliveira Gomes). Portanto, como o poeta, o estadista é, de algum modo, um fingidor.
A rigor, Biden não acredita que Putin tenha mudado ou que vai mudar, adaptando-se àquilo que os Estados Unidos entendem como “paz global” e “civilização” (respeito aos direitos humanos, por exemplo). Os instrumentos de poder, que o garantem no comando da Rússia há 20 anos, vão continuar sendo usados. Ameaças a determinados países (como Ucrânia), grampos, espionagem digital, divulgação de fake news em escala industrial-global — nada vai parar.
O estadista, ao contrário do cidadão comum, tem de apresentar certo “otimismo” (no fundo, cinismo), mesmo quando tem informações suficientes para ser pessimista. É o caso de Biden.
No encontro com Biden, um político afável — mas duro e realista, frise-se —, Putin se recusou a mencionar o nome de Alexei Navalny, líder da oposição (Stálin também não mencionava o nome de Trótski, exceto quando dava ordens para matá-lo) e minimizou sua política de abusos frequentes aos direitos humanos. Kaitlan Collins notou a “ambiguidade” de Putin — na verdade, é desfaçatez articulada — e sustentou que não se podia sugerir que o encontro entre o americano e o russo tenha sido “produtivo”. A diplomacia tende a considerar que o encontro em si, um gesto de “boa vontade”, é um “avanço”.
Irritado com a insistência de Kaitlan Collins — que está certa —, Biden disse: “Se você não entende isso, está no ramo errado”. Na verdade, não está. O presidente está sendo realista, mas o dever da repórter é dizer a verdade: um encontro dos “homens nucleares” não vai mudar Putin. Mas o americano não pode deixar transparecer que, além de estar perdendo tempo, está sendo enganado pelo “parceiro”, que, no fundo, é um rival poderoso, ainda que sem a força econômica da China.
Mais tarde, ao perceber o mal-estar gerado por sua fala — que reduz sua “santidade” —, Biden disse a um grupo de repórteres que devia “um pedido de desculpas”. “Eu não deveria ter sido um ‘sabichão’ na última resposta que dei”, admitiu. “Me parece que, para ser um bom repórter, você tem de ser negativo, tem que ter uma visão negativa da vida”, acrescentou, reduzindo a força do pedido de desculpas. O que o presidente quer, como os políticos de quaisquer outros países, é que a imprensa seja o “sorriso do poder” e, no mais das vezes, a “cárie da sociedade”. Repetindo, Naipaul está certo: “Apenas o poder revela o político”.
Ao saber do pedido de desculpas de Biden — meio enviesado, por certo, Kaitlan Collins postulou que “não” era necessário, porque, ao fazer o reparo à posição do presidente, estava tão-somente fazendo o seu trabalho. “Ele não precisava se desculpar, embora eu aprecie o que ele fez”, disse a repórter (que também problemas com Trump). Ao jornalista cabe, em geral, revelar a verdade. Políticos, mesmo o santo Biden, tendem a soterrá-la nos escombros dos interesses pessoais ou de Estado.
Kaitlan Collins frisou que “fazer uma pergunta ao presidente não significa que ela tenha uma inclinação positiva ou negativa. É simplesmente uma forma de entender o raciocínio do presidente, entender como ele vê algo”.
Diferentemente do presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, ao menos Biden não vai começar, a partir de agora, uma campanha para desacreditar a jornalista.
Se o leitor tem alguma dúvida a respeito da “precisão” (ou desconfiança) da jornalista Kaitlan Collins, leia uma resenha sobre um livro da jornalista russa Masha Gessen sobre Putin, publicada pelo Jornal Opção.
https://www.jornalopcao.com.br/colunas-e-blogs/imprensa/livro-expoe-o-russo-vladimir-putin-como-chefao-de-regime-assassino-e-corrupto-128511/