Bernardina Pinheiro foi uma tradutora notável de James Joyce
07 outubro 2021 às 21h20
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Ousada, ela deu aos leitores brasileiros um “Ulisses” complexo, nada pedestre, porém menos difícil de se ler
Antônio Houaiss (1915-1999) construiu a rodovia, deixando-a aberta, mas não pavimentada. Em seguida, Bernardina da Silveira Pinheiro pavimentou-a, facilitando o tráfego. Depois, Caetano Galindo, com a estrada pronta e asfaltada, pôde duplicá-la — melhorando ainda mais o acesso.
Houaiss traduziu “Ulisses”, de James Joyce, e há quem acredite que a leitura em português é quase tão difícil quando a leitura em inglês. Na verdade, não procede. Houaiss deu um Joyce inteligível, sem torná-lo pedestre. Como tradutor experimentado, pôs o romance do irlandês de pé em português, para que se tornasse um rival à altura do original.
Porém, enquanto não havia outra tradução para comparar, não se podia avaliar, com proveito, o trabalho de Héracles de Houaiss. Frise-se que o grande Haroldo de Campos — em outra “encarnação” teria sido bibliotecário da Biblioteca de Alexandria — percebeu as virtudes da tradução.
Em 2005, Bernardina da Silveira Pinheiro deu-nos o resultado de seu enfrentamento com o “monstro” de Joyce. Durante oito anos, comeu e bebeu a escritura do irlandês meio cego. Leu, releu. Chegou-se a comentar que seria uma tradução pedestre. A rigor, não é. É uma grande tradução, de quem conhece as entranhas da prosa de Joyce e dos que vieram antes dele e aparecem, visíveis ou como fantasmas, na sua literatura.
Talvez seja possível sugerir que a tradução de Bernardina Pinheiro não é tão “inventiva” quanto a de Houaiss, que, de certa maneira, teve que reinventar parte da Língua Portuguesa para a transposição de “Ulisses”. Postular que não é tão inventiva não equivale a sugerir que não é inventiva e ousada.
É possível que Bernardina Pinheiro tenha tornado Joyce mais compreensível, porém sem descaracterizá-lo. Ela merece figurar na lista dos melhores tradutores patropis.
Bernardina Pinheiro morreu, aos 99 anos, quase um século de luz, na quinta-feira, 7, no Rio de Janeiro, de pneumonia. Ela foi professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde ensinou gerações a ler a literatura de Joyce — “Dublinenses”, “Um Retrato do Artista Quando Jovem” e “Ulisses”. “O fascínio de Bernardina por James Joyce foi tamanho que ela afirmou, em uma entrevista de 2019, jamais ter lido o romance experimental ‘Finnegans Wake’ (1939) por temer ver o escritor irlandês descontruir a linguagem que lhe era tão cara”, diz reportagem do “Estadão”.
Entre as traduções de Bernardina Pinheiro figuram “Uma Viagem Sentimental Através da França e da Itália”, de Laurence Sterne (um dos pais de Machado de Assis), e “Um Retrato do Artista Quando Jovem”, de Joyce.
Caetano Galindo
Depois de Houaiss e de Bernardina Pinheiro, Caetano Galindo, munido de coragem e talento, traduziu “Ulysses”, agora com “y”, para o português. Pode-se apontar que há uma “atualização” das traduções anteriores, um prosseguimento qualitativo, mas que não invalida em nada as versões precedentes. O leitor brasileiro tem o privilégio de contar com três traduções de qualidade, que, a rigor, são complementares.