Benjamin Ferencz diz que nazistas julgados em Nuremberg não se arrependeram de seus crimes
31 maio 2014 às 10h30
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Procurador-geral dos Estados Unidos sustenta que a pena de morte para alguns nazistas foi justa, pois eles eram responsáveis por milhares de mortes de pessoas inocentes
(Nascido na Transilvânia [hoje parte da Romênia], Benjamin Ferencz morreu na sexta-feira, 7 de abril, em 2023. Formado em Direito, em Harvard, atuou no Tribunal de Nuremberg. Ele processou integrantes do grupo paramilitar nazista que era “especializado” em matar civis. O Einsatzgeruppen matou cerca de 34 mil judeus.)
O jornal espanhol “El Mundo” publicou na sexta-feira, 23 de maio, uma interessante entrevista do procurador-geral dos Estados Unidos nos julgamentos de Nuremberg, Benjamin Berell Ferencz. Em Nuremberg, na Alemanha, foram julgadas 22 figuras de proa do nazismo. Eles responderam a quatro acusações: conspiração, crimes contra a paz (guerra de agressão), crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Quando terminou a guerra, afirma o historiador britânico Norman Davies, no livro “Europa na Guerra — 1939-1945” (Record, 599 páginas, tradução de Vitor Paolozzi), “os vitoriosos Aliados estavam determinados a levar à justiça os criminosos de guerra alemães. Os britânicos a princípio se opuseram, mas, em 8 de agosto de 1945, a pressão americana resultou num acordo para a criação de um Tribunal Militar Internacional. (…) Os veredictos, anunciados em 1º de outubro de 1946, incluíram 12 sentenças de morte por enforcamento (Bormann, in absentia, Hans Frank, Wilhelm Frick, Hermann Göering [se matou antes], Alfred Johl, Ernst Kaltenbrunner, Wilhelm Keitel, Joachim von Ribbentrop, Alfred Rosenberg, Fritz Sauckel, Arthur Seyss-Inquart, Julius Streicher), três prisões perpétuas (Rudolf Hess, Walther Funk e Erich Raeder), quatro longos aprisionamentos (Baldur von Schirach e Albert Speer, 20 anos; Constantin von Neurath, 15 anos; e Karl Doenitz, dez anos) e três absolvições”. Na introdução ao livro “As Entrevistas de Nuremberg” (Companhia das Letras, 551 páginas, tradução de Ivo Korytowski), do psiquiatra e psicanalista americano Leon Goldensohn (que, diligente, colheu depoimentos impressionantes de Karl Doenitz, Hans Frank, Herman Göering, Ribbentrop, entre outros, além de depoimentos de várias testemunhas), o historiador Robert Gellately informa que “a ideia dos julgamentos foi aparentemente sugerida pela primeira vez pelo ministro do Exterior da União Soviética, Vyacheslav Molotov, já em 14 de outubro de 1942”.
Gellately escreve que “os julgamentos foram um empreendimento gigantesco. Havia quatro juízes e quatro promotores (com suplentes), cada qual com sua própria equipe, e todos oriundos das potências vitoriosas — os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a União Soviética — bem como a França. A corte reuniu-se em 403 sessões abertas, ouviu um total de 166 testemunhas e examinou literalmente milhares de declarações juramentadas e centenas de milhares de documentos. Os julgamentos eram enfadonhos e lentos, até porque eram conduzidos em quatro línguas e exigiam um enorme trabalho de tradução simplesmente para registrar o depoimento, os interrogatórios, as apresentações por escrito e muitos documentos”.
No livro “Inferno — O Mundo em Guerra: 1939-1945” (Intrínseca, 766 páginas, tradução de Berilo Vargas), o historiador inglês Max Hastings assinala que “apenas uma minúscula fração dos culpados por crimes de guerra foi processada, em parte porque os vitoriosos não tinham estômago para a escala de execuções, na casa das centenas de milhares, que seriam necessárias se fosse aplicada rigorosa justiça contra cada assassino do Eixo. Menos de mil execuções punitivas ocorreram nas zonas de ocupação ocidental. Cerca de 920 japoneses foram executados, mais de 300 pelos holandeses, por crimes cometidos nas Índias Orientais. Os Aliados preferiram tratar a Áustria como vítima, e não como parceira na culpa alemã na guerra, por isso não houve ali nenhum processo sério de ‘desnazificação’”.
Hastings anota que “muitos alemães condenados por assassinatos em massa cumpriram penas de prisão por apenas alguns anos ou livraram-se pagando uma multa de 50 Reichmarks, valor insignificante. (…) Alguns britânicos e americanos, e muitos russos, eram culpados de crimes contra a lei internacional, notavelmente a matança de prisioneiros, mas poucos enfrentaram sequer a corte marcial. Pertencer ao lado vitorioso era suficiente para garantir anistia; os crimes de guerra cometidos pelos Aliados raramente foram reconhecidos. (…) Os julgamentos e as sentenças de Tóquio e de Nuremberg representaram não a injustiça, mas uma justiça parcial”.
Crimes e a lei
Ferencz conta que, ao visitar o campo de concentração de Mauthausen, na Áustria, espantou-se com as pessoas que eram puros esqueletos. Elas estavam nuas. Ele pegou roupas na casa de uma família nazista e levou para vestir os prisioneiros recém-libertados. No dia seguinte, a proprietária da casa descobriu os armários vazios e o acusou de “ladrão”. “Ferencz a arrastou à força até o campo e a obrigou a retirar as palavras.”
Em 1947, Ferencz atuou como procurador-geral dos EUA no julgamento dos Einsatzgruppen, oficiais das SS, em Nuremberg. Ele afirma que, se os militares que cometeram crimes brutais durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) permanecessem impunes, “a lei teria perdido seu sentido e a humanidade teria de viver com medo”. Ferencz, que tinha 27 anos, conta que 21 oficiais foram condenados.
A repórter María Crespo pergunta: “Qual foi a lição mais importante do Julgamento de Nuremberg?” Ferencz responde: “Definiram pela primeira vez o que constitui um crime de guerra. Foi um importante passo no processo de tentar controlar o comportamento dos seres humanos com base na lei. Pedi ao Tribunal que reconhecesse o direito de cada ser humano viver com dignidade e liberdade, independentemente de sua raça ou ideologia. Não buscava vingança”.
À pergunta “era seu primeiro julgamento. Estava nervoso por enfrentar 22 dirigentes do governo nazista?”, Ferencz replicou: “Não. Eu não havia matado ninguém. Tinha provas documentais do que haviam feito”. Sabia quanto judeus haviam matado. “Eles é que tinham motivo para ficarem nervosos. Com as provas [documentos oficiais do nazismo], não precisava de testemunhas, por isso não as convoquei. Condenei os nazistas graças aos seus próprios documentos”, afirma Ferencz.
Os acusados foram selecionados, afirma Ferencz, “por seu posto no governo nazista e por sua inteligência”. Os nazistas tinham profissões, muitos eram formados em universidades e alguns tinham até doutorado. “Ninguém podia dizer que eram uns selvagens. Eram pessoas educadas e inteligentes. Acreditavam que fizeram o que era justo e morreram pensando que agiram corretamente. Nunca mostraram arrependimento. Isso foi uma enorme decepção para mim.”
“El Mundo” inquire: “Dos 24 generais julgados, 14 foram condenados a morrer enforcados. A pena de morte não é contraditória com a Justiça?” Ferencz contesta a tese: “Não. Aqueles oficiais eram responsáveis pela morte de milhares de pessoas”. Ele diz que, ainda que não inteiramente satisfeito, pediu a pena de morte para os acusados. “O importante eram os princípios.” Os nazistas haviam atropelado as regras mais elementares de convivência entre as pessoas. O projeto de matar um povo, os judeus, mostra a gravidade do ideário do governo de Adolf Hitler.
A repórter indaga: “Tem 95 anos e ainda não perdeu a esperança. Como consegue?” Ferencz, ao contrário do que diz “El Mundo”, tem 94 anos. “Não tenho escolha.” Ele frisa que o ser humano, “quando chora por dentro”, precisa “rir por fora”. “Do contrário, se afogará em lágrimas” e sucumbirá. O promotor-chefe frisa que é preciso seguir tentando melhorar o mundo e os homens. “Eu vi os horrores da guerra e do homem, mas também vi o mundo mudar. É preciso começar a educar as pessoas desde o início, desde os níveis mais básicos, para ensiná-las o que significam a compaixão e o entendimento.”