A imprensa critica e deve ser criticada. Alguns jornais, como o “New York Times” e a “Folha de S. Paulo”, mantêm um jornalista, o ombudsman — espécie de procurador dos leitores —, para analisar possíveis erros dos repórteres. As redações, no geral, não reagem bem aos reparos, e quase sempre os refutam. Mas a instância crítica é importante, sobretudo porque mostra que os jornais erram e nem sempre se corrigem.

Mas há uma diferença crucial entre “crítica”, que ilumina a realidade, e “ataque”, que contribui tão-somente para criar confusão e incompreensão.

No domingo, 8, a jornalista Miriam Leitão escreveu, em “O Globo”, que o procurador-geral da República, Augusto Aras — há quem postule que era o defensor-geral do governo de Jair Bolsonaro, o que é um exagero, por certo —, acabou com os grupos dos procuradores que investigavam e combatiam atos antidemocráticos. Tais grupos foram substituídos por uma comissão, subordinada ao chefe do Ministério Público Federal.

Augusto Aras, procurador-geral da República | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O que Miriam Leitão disse é jornalismo, quer dizer, é uma crítica, e pertinente. A informação que publicou não é falsa. É totalmente verdadeira. Tanto que, ao respondê-la, Augusto Aras não tratou do “mérito”, do fato em si. O procurador-geral “atacou”, em vez de criticar, a articulista de “O Globo”.

A fala de Augusto Aras: “Essa senhora parece que tem um fetiche comigo, talvez porque eu não tenha atendido às matérias seletivas para ela e à família dela. Essa senhora foi cortada da seletividade que tinha na Operação Lava Jato. E, provavelmente, o jornal dela ganhou mais dinheiro do que com a novela das 8”.

A fala do procurador é curta, mas ofensiva, de várias maneiras. Primeiro, é desrespeitosa com a jornalista e a mulher Miriam Leitão, ao acusá-la de ter “um fetiche” com ele. As críticas da analista, uma das mais respeitadas da imprensa patropi, não foram pessoais. Não há uma campanha contra Augusto Aras. O estranho é que o procurador-geral, dada sua grosseria, não tenha pedido desculpas.

Segundo, Augusto Aras diz, mas não apresenta evidências de que Miriam Leitão e seus filhos jornalistas, Matheus Leitão, da revista “Veja”, e Vladimir Netto, da TV Globo, exigiam “matérias seletivas”. Terceiro, como “O Globo” ganhou mais dinheiro com a Lava Jato? O procurador-geral, que sabe que o ônus da prova cabe ao acusador, não apresentou provas do que afirmou. Portanto, o que disse não é crítica.

A nota da Associação Nacional dos Jornais (ANJ) é pertinente: “O caráter ofensivo das manifestações [de Augusto Aras] se torna ainda mais grave quando partem de uma autoridade que deveria zelar pela proteção legal à imprensa e, ao mesmo tempo, defender o respeito às mulheres jornalistas, que têm sido as mais agredidas no Brasil nos últimos anos. Por fim, a ANJ reafirma sua solidariedade ao Jornal ‘O Globo’ e à Miriam Leitão, vencedora do Prêmio ANJ de Liberdade de Imprensa em 2017, exatamente em razão de sua postura permanente em defesa dos valores e princípios que norteiam o melhor jornalismo”.

Jair Bolsonaro: suas grosserias contaminaram a República | Foto: Reprodução

“O Globo” também disse palavras apropriadas: “É assustador que alguém que ocupa o cargo mais elevado do Ministério Público, guardião maior da lei, ofenda a honra de uma das profissionais mais brilhantes e corretas do jornalismo brasileiro. E de um jornal com um extenso histórico de serviços prestados à democracia brasileira. Ninguém é imune a críticas — nem jornalistas nem autoridades. Mas ninguém, no Estado Democrático de Direito, pode ofender de maneira tão vil como fez o procurador-geral. A ofensa de Aras certamente diz mais sobre ele do que sobre Míriam e O Globo”.

O ex-presidente Jair Bolsonaro se foi, junto com suas grosserias, mas deixou uma espécie de “espírito” instalado em algumas pessoas, como Augusto Aras, e uma espécie de “peste” incrustada na República, o bolsonarismo radicalizado e bárbaro. O poeta russo Ievguêni Ievtuchenko é de uma precisão milimétrica: “Enquanto neste mundo houver herdeiros de Stálin,/ para mim,/ no Mausoléu,/ Stálin ainda resiste”.