As críticas dos especialistas ao Pacote da Democracia do governo Lula da Silva
23 julho 2023 às 00h00
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Como lidar com os indivíduos que invadiram os edifícios que sediam o Supremo Tribunal Federal, a Presidência da República e o Congresso Nacional? Aqueles que estiveram na linha de frente, comandando a destruição, e aqueles que a financiaram devem ser tratados como criminosos. A gravidade maior não tem a ver com a destruição de móveis e vidraças, e sim com o que o ato da invasão realmente quis dizer.
O que se queria era mostrar a fragilidade da democracia e, portanto, indicar que um golpe de Estado era praticável. A “demolição” física estava conectada à “dissolução” das instituições. Os invasores disseram, com sua ação de bárbaros, que os poderes que geram e estabilizam a democracia — o Legislativo, o Judiciário e o Executivo — não resistiam a um, digamos, “sopro”.
Há quem postule que a atividade dos que operaram o golpe no dia 8 de janeiro de 2023 não deve ser enquadrada como “terrorismo”. Pois estou entre aqueles que consideram o putsch — que talvez tenha falhado por falta de uma liderança política — como um ato praticado por terroristas. Como tais, devem ser tratados com o máximo de rigor, sobretudo aqueles que planejaram a ação — financiando-a e incentivando-a.
As prisões dos criminosos golpistas estão amparadas pelas leis, mas as culpas precisam ser individualizadas com relativa cautela. No meio da multidão, por certo, havia alguns líderes, porque é preciso sublinhar que havia ordem naquilo que parecia apenas caos.
Mas parte significativa dos aloprados estava ali, como se diz, de auê. É como se tivessem saltado diretamente das redes sociais — onde se xinga à vontade, como se vivessem numa realidade paralela — para o mundo real. Pelo que fizeram, envolvendo-se em atos contra a democracia — e com a finalidade de miná-la —, merecem alguma penalização. Porém, o justo são penas leves, como advertências.
Agora, incentivadores, participantes e financiadores diretos — os chefes — merecem penas mais duras, como prisão e, sobretudo, indenização ao Erário. Deveriam, também, ser proibidos de negociar com o setor público, de contrair empréstimos no Banco do Brasil, na Caixa Econômica Federal e no BNDES.
Em suma, o terrorismo privado contra o Estado merece penalização judicial severa. Mas é preciso lembrar que não pode ser apenas contra a direita. Não postulo que o MST é uma organização criminosa, mas certos atos de alguns de seus integrantes beiram o terrorismo.
Se há ataques diretos às instituições, há também aos seus representantes, como o ministro Alexandre de Moraes — uma das figuras mais respeitáveis da República e grandemente responsável pela “vitória” da democracia nos últimos anos. O ministro Luís Roberto Barroso, num encontro da UNE — que não é um lugar adequado para ministros do Supremo Tribunal Federal —, disse à plateia: “Nós derrotamos o bolsonarismo”. Na realidade, não mentiu. O STF foi a grande barreira à hegemonia do bolsonarismo, colocando-o em xeque — freando-o — de maneira constante. Mas há verdades, ainda que necessárias e elogiáveis, que não se diz (ao menos publicamente). O excelente magistrado (um dos mais preparados do país) será, de alguma maneira, “penalizado”? É óbvio que não. Mas merecia uma advertência de seus pares? É provável.
Ao contrário de Luís Roberto Barroso — um dos ministros que mais respeito pela cultura jurídica (e em geral) —, Alexandre de Moraes, dito Xandão pelos adversários, é mais dado à liturgia do cargo. Ele aprecia “falar”, como se diz, nos autos. Aí é firme, sólido, justo e corajoso.
Por sua firmeza, Alexandre de Moraes é o ministro que mais sofre agressões verbais e, agora, quase física — um filho teria levado um tapa, na Itália. Como lidar com os agressores do magistrado? É preciso criar leis específicas? As leis atuais são suficientes, tudo indica.
Pacote da Democracia e freio à barbárie
Na sexta-feira, 21, o presidente Lula da Silva, do PT, lançou o Pacote da Democracia. Sua ideia básica é que aquele que “atentar contra a vida” de autoridades (presidente da República, ministros do STF) pode ser condenado a uma pena de até 40 anos de prisão.
Na sexta-feira, 21, a repórter Pepita Ortega, do “Estadão”, publicou uma interessante matéria, com o título de “‘Punitivista’ e até ‘inconstitucional’: o que dizem juristas sobre ‘Pacote da Democracia’ de Lula”. Ao todos foram ouvidos oito especialistas, e citarei alguns.
O constitucionalista André Marsiglia postula, de acordo com a síntese de “O Estado de S. Paulo”, que “o aumento das penas somado a uma ‘interpretação muito elástica do que pode ser ameaça ao Estado’ pode resultar em ‘encolhimento da crítica aos agentes públicos’ — ‘o que, obviamente, não é desejável em uma democracia”.
O crime de atentado contra o Estado democrático, assinala André Marsiglia, “tem por objeto atos extremados e excepcionais, dignos de momentos da instabilidade institucional grave”. Então, frisa o jurista, “é inclusive contraditório as autoridades dizerem que atualmente nossas instituições estão fortes e são inabaláveis e, ao mesmo tempo, entenderem ser necessário um pacote com penas tão agressivas”.
O criminalista Conrado Gontijo avalia que o aumento de penas é “descabido” e “inconstitucional”. As penas atuais são “especialmente graves”. “Aumentá-las representa afronta ao princípio constitucional da proporcionalidade. Mais importante do que agravar as penas existentes, é tornar efetivas as apurações criminais, de modo a assegurar a responsabilização de quem atente contra o Estado Democrático de Direito”, sugere.
O constitucionalista Aílton Soares de Oliveira corrobora: há “inconstitucionalidade” no pacote. “O texto constitucional não faz distinção de vidas. Vidas são vidas, até por isso o Estado coloca à disposição dos agentes públicos um aparato judicial e policial para protegê-los. É evidente que há um agravante ou outro a depender do crime e da incapacidade de resistência da vítima.”
Aílton Soares diz que é necessário discutir a “definição de atentando contra a vida de agente público do alto escalão dos poderes democráticos, além de especificar quando haveria cometimento ou tentativa do crime. ‘Seria um novo tipo penal certamente. Porque o crime não é só o cometido, ele é também o tentado, e nesse sentido depende de ampla discussão’”.
Ao debater o fato de o governo estar adotando uma medida “punitivista”, o criminalista Vinicius Cochi assinala que “o problema não reside na ausência de legislação, afinal ela existe e não é branda. O enfrentamento deve ter enfoque no fortalecimento dos órgãos de persecução, responsáveis por investigar os episódios, bem como na qualificação do debate público, que está cada dia mais radical e hostil”.
Especialista em Direito Penal econômico, Lucas Serafim Alves afirma que, apesar de válido, o projeto “vai tratar um tema que não se revolverá com prisões. Atos atentatórios à democracia devem ser tratados em outras instâncias, em especial à preliminar ao acontecimento desses fatos. Amedrontar através da norma penal não inibirá de que pessoas atentem contra o Estado Democrático de Direito. É uma tendência, o projeto é legítimo, o endurecimento das penas visa basicamente dar a esses ofensores o regime fechado de regime de pena, mas penso que devemos trabalhar isso em outras esferas também e não apenas na criminal”.
A cautela e ponderações são justas. Porém, sem medidas mais duras, que levem à prisão por um longo tempo, é possível que amanhã alguém mate um magistrado em praça pública (a agressão a Alexandre de Moraes não foi mais grave, quem sabe, porque estava num aeroporto, local onde as pessoas não podem portar armas. Porém, se os agressores estivessem armados, poderia ter acontecido uma violência mais grave). O projeto, portanto, pode ser preventivo, sobretudo ao assustar aqueles que, apesar de violentos, não querem passar parte de sua vida numa penitenciária.