A “Folha de S. Paulo” publicou na segunda-feira, 11, o artigo “Aceitem a democracia”, do ex-presidente Jair Bolsonaro. O subtítulo põe lenha na fogueira: “O povo tem escolhido a ordem, o progresso, a liberdade econômica e de expressão e o respeito às famílias e à religião”.

(Antes de comentar a polêmica que gestou, vale um comentário sobre Winston Churchill. Ao subestimarem Adolf Hitler, deixando de ler seu livro, “Minha Luta”, as elites inglesas deixaram de compreender a verdadeira extensão e periculosidade de suas ideias — mal ajambradas, é certo, mas apresentadas com extrema convicção.

Ao contrário do primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain, Churchill teve o cuidado de ler as “memórias” de Hitler e, por isso, percebeu, de cara, a monstruosidade de suas ideias, quer dizer, o que era de fato o nazismo.

Os que não haviam lido “Minha Luta” avaliaram, errado, que poderiam negociar com Hitler como um político “normal”, “democrata”. Ao se tornar primeiro-ministro, Churchill disse ao povo inglês que não havia alternativa: ou se destruía o nazista ou a democracia seria sepultada em toda a Europa.

Com suas palavras-bombas, com frases afiadas de um escritor-guerreiro, Churchill “levantou” a Inglaterra e mostrou ao mundo que era possível resistir à ditadura cruenta de Hitler.)

Bolsonaro: autoritário. Seria totalitário?

Bolsonaro não é o simulacro patropi de Hitler e do italiano Benito Mussolini. Talvez seu guru, além do coronel Brilhante Ustra, seja o presidente-general Emilio Garrastazu Médici, que governou o Brasil com mão de ferro, na primeira metade da década de 1970. A ditadura civil-militar instalada em 1964 era autoritária, mas, com Médici, beirou ao totalitarismo. Com seu sucessor, o presidente-general Ernesto Geisel, a ditadura permaneceu autoritária, mas “desistiu” do ranço totalitário do governo anterior.

É provável que Bolsonaro não saiba se definir em termos ideológicos, exceto como líder de uma certa direita. Mas, mesmo para um cientista político, não é tão fácil explicá-lo, sem incorrer a preconceitos.

Bolsonaro não é, por certo, fascista — o que exige uma sofisticação (um estofo) que o capitão reformado do Exército não tem. O bolsonarismo é autoritário, é fato. Porém, ao mesmo tempo, é difuso e não chega a ser um movimento orgânico na modelagem do fascismo italiano de Mussolini ou do nazismo alemão de Hitler.

Jair Bolsonaro e Tarcísio de Freitas: o segundo pode, com o tempo, ser a destruição do primeiro, dado o fato de ser moderado e agradar o centro político | Foto: Divulgação

Talvez uma definição menos imprecisa do bolsonarismo — e de Bolsonaro — seja sugerir que se trata de um populismo de direita, de matiz autoritário.

O bolsonarismo é inteiramente avesso à democracia? Talvez sim, talvez não. Por enquanto, está disputando eleições, o que o coloca no espectro da democracia.

Entretanto, além do 8 de Janeiro de 2021, em que se tentou um golpe de Estado à direita — de matiz anárquico, sem uma liderança direta e presente —, Bolsonaro e sua trupe planejaram, de acordo com a minuta (ou minutas) do golpe, um putsch. Por isso o caráter “democrático” do bolsonarismo exige questionamento.

Na história do Brasil, em alguns momentos, a esquerda operou a ideia de democracia como etapa para o socialismo (este, de acordo com o marxismo-leninismo, uma etapa para o comunismo). Mais tarde, um intelectual comunista, Carlos Nelson Coutinho, escreveu um excelente livro com o título de “A Democracia Como Valor Universal”. Ou seja, o “fim” a se buscar é a democracia, que não pode ser superada.

Parte da direita pensa mais ou menos como a esquerda pensava, quer dizer, a democracia (vista como “etapa”) pode ser “usada”, e não para reforçá-la, e sim para ocupar espaço e pensar num “sistema” não democrático. Não deixa de ser sintomático que Aldo Rebelo, líder do PC do B por décadas e político sério, tenha se aproximado do bolsonarismo em São Paulo. A vocação autoritária “aproxima” direita e esquerda, embora sejam diferentes.

É relevante “retirar” a direita da surdina

Jornalistas sérios, como Ricardo Noblat e Ricardo Kotscho, condenaram duramente a “Folha de S. Paulo” por ter publicado o artigo de Bolsonaro. Eles têm razão? Em parte, sim. Porque o título do artigo, “Aceitem a democracia” — e, a rigor, todo o texto — é de um cinismo atroz. Apresenta-se a mentira como verdade.

A rigor, mesmo disputando eleição, Bolsonaro não é um democrata clássico (outro de seus ídolos era Sylvio Frota, que, como ministro do Exército, chegou a pensar na derrubada do presidente Ernesto Geisel, por considerá-lo moderado).

Porém, como se vive numa democracia — que é graça e desgraça —, não se deve impedir alguém de expor suas ideias (ou falta delas) em jornais, como a “Folha de S. Paulo”.

É importante saber o que pensa Bolsonaro, mesmo quando falseia os fatos — a rigor, a esquerda, apesar de todos os deslizes, como envolvimento com a corrupção, aceita a democracia, mas não se pode dizer o mesmo do bolsonarismo (o golpismo de 8 de Janeiro e a minuta do golpe estão aí como “provas”).

A direita na surdina, conspirando longe dos holofotes, é mais perigosa do que quando explícita, quando volta ao leito “normal” — como jornais — para se manifestar. É preciso entender seus movimentos. A relativa moderação, esboçada no artigo por Bolsonaro, pode ser, claro, tática. Ainda assim, é interessante vê-lo explicitando sua ideia.

Qualquer coisa que se escreva sobre o bolsonarismo, de maneira nuançada, como se está tentando fazer neste texto, soa a defesa do que pensa e faz o ex-presidente.

Diz-se que a “Folha de S. Paulo” errou ao abrir espaço para Bolsonaro escrever suas diatribes. Mas por que, exatamente, um jornal não pode acolher um artigo de um político que obteve 58 milhões de votos no pleito de 2022? Por que desprezar os eleitores e leitores do ex-presidente? Por que a direita — talvez extrema-direita — não pode se manifestar?

Li o artigo de Bolsonaro. É ruim. Pior: é uma farsa política, uma contrafação. Se não apreciei as ideias, porque não verdadeiras — o bolsonarismo é mesmo golpista, ainda que dispute eleições —, não deixei de observar, com interesse, a manifestação do ex-presidente num foro que, por longo tempo, rejeitou. Achei relevante também a manifestação em si.

Ao acolher Bolsonaro em suas páginas, sempre abertas para a esquerda, a “Folha de S. Paulo” ficou menos ou mais democrática? Mais, é claro. O mundo não caiu e a democracia não ruiu porque o ex-presidente escreveu um artigo e expôs o que pensa sobre a política do Brasil e do mundo.

Atrair a direita para foros democráticos pode ser um caminho para não levá-la, de vez, para a extrema-direita afeita à violência política? Há uma direita democrática no país, com os governadores Ronaldo Caiado (União Brasil), de Goiás, Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais, e Tarcísio de Freitas (Republicanos), de São Paulo. Esta direita, que começa a ser observada com atenção — até porque (Ronaldo Caiado e Tarcísio de Freitas) mostrou força na eleição de 2024, superando o bolsonarismo, assusta, de alguma maneira, o ex-presidente e acólitos.

Bolsonaro é inculto, mas é inteligente e astuto. Por isso percebeu que a “nova” direita pode substitui-lo — assim como a esquerda de Lula da Silva substituiu a esquerda de Leonel Brizola (o petista-chefe, e não a ditadura, “apagou” o líder gaúcho) — já na disputa de 2026, e exatamente porque é mais moderada e próxima do centro político.

A força do bolsonarismo reside no seu radicalismo, é certo. Mas este radicalismo, com sua imoderação e violência, pode acabar se tornando uma fraqueza.

(Li, em algum lugar, que o artigo não foi escrito por Bolsonaro. Isto não tem a mínima importância. Exceto Abraham Lincoln e Churchill, raros homens de Estado escrevem seus discursos e artigos.

Apreciei a polêmica em torno do texto, porque mostra a vitalidade da democracia, que, claro, não exclui as ideias que não aprovamos. Por isso, escrevi que a democracia é graça e desgraça. Graça porque permite a liberdade de expressão a todos e a alternância no poder. Desgraça porque, aberta à liberdade, abre espaço para os que querem destrui-la.)