Arnaldo Jabor criou uma legião de leitores nas classes médias

15 fevereiro 2022 às 11h50

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Como diretor de cinema, explicitou e satirizou a classe média. Esta se “vingou” se tornou e sua leitora mais fiel e empolgada
“Felicidade para mim é criar, é isso que me deixa feliz. Sou um criador” — Arnaldo Jabor
Durante anos, Paulo Francis foi o principal colunista da “Folha de S. Paulo”, com leitores fiéis. Porém, começou a ter atritos com o ombudsman, Caio Túlio Costa, que o tachou de “irreverente”, o que o irritou profundamente. O fiscal do leitor recebeu o troco imediatamente, tendo sido chamado de “cara de lagartixa”. Ante a crítica interna, que o desagradou, Paulo Francis aceitou convite do “Estadão” e deixou o jornal da família Frias (jornal hoje intensamente patrulhado, inclusive internamente, e com reações esparsas e amedrontadas). O jornal perdeu o polemista e não conseguiu substitui-lo. Inicialmente, tentou colocar Marcelo Coelho como um Francis moderado, racionalista. Não deu certo. O jornalista-sociólogo escreve muito bem, sobre variados assuntos, mas não é um polemista. Pelo menos não é um polemista feroz.

Com a morte de Paulo Francis, aos 66 anos, em 1997, a imprensa perdeu um jornalista e, sobretudo, um polemista poderoso (além de grande divulgador de literatura, música, teatro. Os melhores lançamentos de livros no exterior eram comentados, em primeira mão, pelo autor de “O Afeto Que Se Encerra” — memórias deliciosas). Dizia-se que, como comentarista, dava “chutes”. Certo, dava. Mas há tantos que não erram porque nem se arriscam a chutar.
Depois de Paulo Francis, restou (como meio-polemista), na imprensa patropi, Arnaldo Jabor — que morreu na terça-feira, 15, aos 81 anos, de complicações derivadas de um acidente vasculhar cerebral.

Com suas crônicas, polêmicas — ainda que menos que as de Paulo Francis —, Arnaldo Jabor conquistou uma legião de leitores. Ele dizia o que pensava, e com imensa graça. Tanto nas crônicas como nos comentários feitos na TV Globo, era teatral, algo messiânico. Escrevia muito bem — com frases-aforismos e quase-versos — e dizia aquilo que muitos queriam (ou não queriam) ler ou ouvir. A classe média parece tê-lo adotado como uma espécie de representante — daí seu imenso sucesso.
[No Brasil, há uma tradição de os políticos representarem as elites e, por vezes, dizem que representam o povão. As classes médias não são representadas ou são subrepresentadas? Por intuição, ou como resultado de um marketing certeiro, Jair Bolsonaro percebeu, em 2018, que as classes médias — soltas na história e na vida — podiam ser conquistadas por um discurso que fundia moralismo e religiosidade. Tornou-se uma espécie de seu representante, canalizando o apoio daqueles que foram às ruas protestar contra a corrupção do governo de Dilma Rousseff.]

Havia, nas palavras candentes e teatralizadas (sempre convocadoras de nossa atenção) do grande Jabor, uma ligação direta com as classes médias? É provável que sim. Mas ele era moralista? Talvez não. Porém, aqui e ali, parecia uma espécie de neoudenista. Mas era inteligente e livre o suficiente para escapar das armadilhas do moralismo, da tese de que há uma ideia salvadora para a humanidade. Sabia que não há possibilidade de se construir uma sociedade perfeita. Era, afinal, um filho de, digamos, Machado de Assis com Nelson Rodrigues. O segundo era moralista? Era. Mas, como criador, era tão grande que escapava da camisa de força do moralismo — tanto que, nas suas peças e crônicas, exibia o ser humano como era (e é), ou seja, capaz dos maiores gestos de decência e, ao mesmo tempo, das maiores iniquidades. A desgraça vive à empreita, no meio de nós.
Gênios céticos, como Machado de Assis e Nelson Rodrigues, sabem que não há redenção alguma para os seres humanos, que, ao longo dos tempos, vão continuar matando, violentando, ainda que carregando nas mãos ou nos bolsos as tecnologias mais refinadas da história. Como os dois, Arnaldo Jabor certamente não acreditava em sociedades e indivíduos perfeitos. Mas, como Nelson Rodrigues, tinha esperança? É provável que sim. Para ficar vivo, é preciso, por vezes, acreditar em ideias grandiosas, na possibilidade de um paraíso terrestre. Mesmo quando, no íntimo, não se crê nisso.

Em 1973, Arnaldo Jabor dirigiu o filme “Toda Nudez Será Castigada”, baseado na peça de Nelson Rodrigues. Ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim e se tornou o primeiro vencedor do Festival de Cinema de Gramado. Dois anos depois, dirigiu “O Casamento”, também baseado numa peça de Nelson Rodrigues. O cineasta entendeu à perfeição a sátira às classes médias (a rigor, não uma mera sátira, e sim um explicitação de uma classe pouco exibida nas artes brasileiras, exceto de modo caricato). A atriz Camila Amado ganhou o Kikito de ouro como melhor atriz coadjuvante.
Arnaldo Jabor é “autor”, como dizem os franceses, de outros filmes de qualidade, como “Tudo Bem”, “Eu Te Amo” e “E Eu Sei Que Vou Te Amar”(pelo qual Fernanda Torres ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes como melhor atriz).
Como cinema não dava dinheiro, ao menos para ele — é o que dizia —, optou pelo jornalismo, escrevendo crônicas (artigos) em jornais, como “Folha de S. Paulo”, “O Globo” e “Estadão”, e fazendo comentários para o “Jornal da Globo”. Deu-se muito bem no jornalismo (e, sim, não era um repórter) e uma legião de leitores começou a segui-lo. Na internet há pelo menos um texto que, apresentado como “de” Arnaldo Jabor, faz sucesso. Porque se tornou um grife… de qualidade.

“Felicidade para mim é criar, é isso que me deixa feliz. Sou um criador”, disse Arnaldo Jabor numa entrevista ao jornal “O Globo”, em 1990. Sim, era um criador, e ao menos em dois campos — o cinema e o jornalismo. E a classe média que exibiu em seus filmes se tornou sua cativa, como leitora.
(Ah, coisas do Brasil varonil: o texto de “O Globo” sobre a morte de Arnaldo Jabor menciona que escrevia no jornal da família Marinho. Porém, propositadamente, esqueceu a “Folha” e “O Estado de S. Paulo”.)