Ao proteger a sociedade da espionagem do Estado, Assange não merece ser extraditado para os EUA

22 maio 2022 às 00h00

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As revelações do WikiLeaks mostraram que as democracias têm comportamento de ditaduras ao investigar países e cidadãos
Estados, com governantes democráticos ou ditatoriais, espionam, quase que abertamente, países e cidadãos, suspeitos ou insuspeitos de qualquer atividade ilegal. Por trás de discursos maviosos, de palavras edulcoradas, de teses sobre a perfeição das leis, o que mais se comete, em nome da suposta defesa da sociedade e da segurança nacional, são infrações — “legais”, dizem. As ilegalidades dos Estados, na violação do sigilo de indivíduos e nações, têm, por vezes, o amparo da lei.
Então, quando vazam informações sobre o que os Estados fazem a respeito da vida privada dos indivíduos — como grampos e outros tipos de vigilância —, a sociedade, no lugar de condenar, deveria aplaudir. Os cidadãos precisam — e merecem — saber o que o Estado está fazendo com suas informações particulares. Quando o WikiLeaks, de Julian Assange, vazou informações de vários países, como os Estados Unidos, pode até ter cometido um crime, a partir do que os Estados avaliam como ato criminoso, mas, na verdade, fez um bem enorme à sociedade.
Acusa-se a China e a Rússia de bisbilhotarem a vida das pessoas, e não apenas em seus países. Bisbilhotam mesmo. Mas as democracias, como a dos Estados Unidos e da Inglaterra, não fazem muito diferente: estão sempre querendo saber o que as pessoas (e os governos de seus países) andam fazendo e, até, pensando.
Fala-se, tanto nas democracias quanto nas democraduras: “Estamos em busca de informações sobre terroristas”. É bonito, é gracioso. Os Estados estão “protegendo” os cidadãos comuns daqueles que colocam bombas em locais públicos e particulares. Esplêndido, não é?
Na verdade, por trás da caçada a terroristas — e não há terroristas em todos os lugares do mundo, sabe-se —, os Estados, como o americano e seu irmão siamês, o britânico, querem ter o controle quase “absoluto” da sociedade, da vida dos indivíduos.
No meio do caminho, ao buscar informações sobre terroristas ou sobre aqueles países que supostamente roubam segredos militares e tecnológicos, determinados Estados passaram a obter informações privilegiadas e estratégicas sobre nações e indivíduos.
Posto isto, qual é o crime maior: o de Julian Assange, que publicou documentos oficiais de governos, como o dos Estados Unidos — 700 mil documentos de ações militares e diplomáticas —, ou o dos Estados que, abusivamente, investigam países e indivíduos?

O crime maior, lógico, não é o de Assange — que, dado tanto tempo de prisão, deveria ser considerado vítima. Apesar do exagero, pode-se sugerir que o australiano de 50 anos é um iluminista, no sentido de explicitar para os cidadãos do mundo inteiro o que os Estados fazem com suas informações, das mais comezinhas às mais secretas. Porque, obviamente, não se investiga tão-somente os grandes segredos dos Estados. A espionagem dita institucional, a de grande porte, é como uma imensa tarrafa ou uma rede: vai “pegando” tudo o que encontra pelo caminho.
Jornalistas, de quaisquer jornais do planeta, podem ser investigados pelos Estados só por terem entrevistado adversários dos Estados Unidos no Oriente Médio ou em outras partes da Terra? Legalmente, não. Mas há Estados que se arvoram em ter direitos sobre a vida dos indivíduos e, com tecnologia avançada, investigam tudo ou quase tudo.
Os Estados Unidos pediram à Inglaterra a extradição de Assange e pretendem julgá-lo. Fala-se numa pena de 175 anos, ou seja, prisão perpétua. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, tem criticado o presidente da Rússia, o ditocrata Vladimir Putin, e tem advertido, implícita ou explicitamente, Jair Bolsonaro, que tem vocação para ditocrata. Mas o comportamento em relação a Assange sugere mão pesada, quase de ditador, contra um indivíduo que, com suas informações, contribuiu para proteger a sociedade do olhar indiscreto do governo americano e de outros.
Há um movimento internacional cobrando que a Inglaterra, aliada dos Estados Unidos, não extradite Assange. Os advogados do fundador do WikiLeaks questionam alguns pontos: “motivação política, negligência legal e abuso de direitos democráticos”. Eles têm razão.
Na Inglaterra, pátria-mãe do Liberalismo, deveriam erguer uma estátua para Assange. Com suas informações confidenciais, sobre malevolência dos Estados, o australiano protegeu os indivíduos. Mais liberal, portanto, impossível. Sua extradição será, se efetivada, um crime contra a liberdade de o indivíduo se rebelar contra aquilo que os governantes, com o controle da Inteligência institucional, fazem, legal ou ilegalmente, com as informações a respeito de sua vida privada.