Antony Beevor diz que o Ocidente subestimou Hitler e subestima Putin
24 novembro 2024 às 00h00
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Um dos maiores historiadores da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e da Revolução Russa (nos seus primórdios), Antony Beevor está com câncer (um mieloma múltiplo, que afeta a medula óssea).
Entrevistado pelo “Abc”, Antony Beevor voltará a fazer quimioterapia em dezembro. Assim como Susan Sontag, que não é citada pelo jornal espanhol nem pelo pesquisador, o autor do brilhante “A Segunda Guerra Mundial” (Record, 952 páginas, tradução de Cristina Cavalcanti) — no qual sugere que a maior batalha do século 20 pode ter começado na Ásia, entre a China e o Japão — diz não ter apreço pela linguagem bélica quando se trata de se referir a uma doença como o câncer. “Não creio que se deve falar do câncer utilizando terminologia militar.” É de “mau gosto”, postula.
Antony Beevor diz que está bem, o que o deixa prostrado é a quimioterapia. O historiador, por se considerar afortunado (é um dos pesquisadores mais respeitados do mundo), não sente raiva por ter câncer. “Nem tudo pode ser perfeito.”
A doença não fez Antony Beevor apelar para Deus. Porque é ateu. “Não me descreveria como um completo ateu, e sim como agnóstico. Mas, realmente, não creio em Deus.” (O agnóstico é o ateu que não aprecia o desgaste da palavra ateu.)
A mulher de Antony Beevor, a historiadora Artemis Cooper, é bem-informada sobre ciência e a respeito do tratamento do marido. “Ela às vezes ri de minha ignorância médica. Acredito que o importante é não especular sobre o futuro. É preciso seguir adiante e fazer aquilo que é aconselhado pelos médicos.”
Terceira guerra mundial à vista?
O mestre britânico diz que “a guerra é o nível mais extremo se se quer um conhecimento profundo das virtudes e dos defeitos humanos”. Antony Beevor diz que busca entender a questão do “mal”.
A um “grande” psiquiatra inglês, Antony Beevor perguntou qual era a diferença entre Hitler e Stálin. “Me respondeu, com as habituais reservas, que não se deveria analisar alguém sem tê-lo conhecido. Ainda assim, afirmou que, com alguma certeza, Stálin era paranoico esquizofrênico. De Hitler a única coisa que podia dizer é que tinha um problema de personalidade. Era malvado? Estava perturbado ou louco?” A resposta, de acordo com o psiquiatra, era “não”.
Otto von Bismarck disse que “a única coisa que aprendemos com a história é que ninguém aprende com a história”. O chanceler alemão também afirmou que “só um tonto aprende com os próprios erros”. Antony Beevor diz que é possível aprender com os erros da história. A mídia cobra que historiadores falem do futuro, quando, na verdade, eles se ocupam do passado. “Churchill dizia que estudamos a história para entender o futuro, mas isso é um erro. Nunca entenderemos o futuro porque a história não se repete. (…) Não há uma fórmula para prever o que vai acontecer.”
Ao avaliar os fatos, inclusive aqueles dos quais discordamos, é preciso ter honestidade intelectual. “A honestidade intelectual é a primeira vítima da indignação moral. Há pessoas que, com raiva, estão dispostas a mentir para respaldar seus argumentos, algo muito evidente nas redes sociais.” A raiva e o ressentimento travam, por vezes, o entendimento amplo dos acontecimentos.
Na torcida para que não aconteça uma nova grande guerra, há dirigentes políticos que subestimam fatos e pessoas. Antony Beevor frisa que a ex-chanceler alemã Angela Merkel acreditou, erradamente, que “mais comércio com a Rússia reduziria a probabilidade de guerra. O resultado foi um erro de cálculo”.
Os europeus, como franceses e ingleses, subestimaram Adolf Hitler, na Alemanha, porque não queriam uma nova guerra destrutiva, como a Grande Guerra de 1914. “Fizemos o mesmo com [Vladimir] Putin, pensando que ninguém iniciaria outra guerra terrestre na Europa. E agora vemos a invasão da Ucrânia.”
Antony Beevor sublinha que, “depois da queda do Muro de Berlim”, em 1989, o “Ocidente pensou que podia reduzir o gasto com defesa, porém subestimamos o risco. Agora vemos que isto tem alentado ditadores a crer que seus adversários são incapazes de defender-se e nos deixa em um momento muito perigoso”. Putin parece ter percebido que a Europa, por exemplo, rosna, mas, sem os dentes dos distantes Estados Unidos, não morde.
“Não estou dizendo que estamos à porta de outra guerra mundial, mas sabemos pela história que os conflitos globais surgem da acumulação de tensões locais. Hoje há tensões na Coreia [do Norte], Ucrânia, Taiwan, Irã e Síria. Isto deveria ser um sinal de alerta, não necessariamente uma certeza, mas uma possibilidade. Mais preocupante é a atitude russa com suas armas nucleares táticas”, assinala Antony Beevor. Putin é um risco à paz global e não respeita, por exemplo, a ONU e não teme a Otan.
O perigo das armas automatizadas da China
O “Abc” inquire se a batalha de Israel em Gaza tem “características de genocídio”. A resposta e Antony Beevor: “Estamos presenciando limpeza étnica dos dois lados. De um lado, a limpeza étnica levada a cabo por Israel nos territórios ocupados da Cisjordânia e, por suposto, em Gaza. Mas a limpeza étnica aparece nos discursos dos palestinos”.
A cautela do historiador é compreensível. Mas, no momento, Israel está massacrando os palestinos, e não apenas buscando matar membros ativos do Hamas (um grupo que, sim, é terrorista e, deste modo, não deve ser enfrentado com luvas de pelica). A retórica palestina — ainda que se leve em consideração o gravíssimo atentado em Israel, que resultou em mais de mil mortes — não equivale à prática israelense.
Para piorar as coisas, Israel pode ganhar a guerra — está vencendo por larga margem a “batalha” contra o Hamas, o Hezbollah e o Irã — e perder a paz para sempre. “Sobreaviso” e “tensão” serão as palavras eternas para os israelenses.
Há quem postule que a grande guerra do século 21 se dará entre os Estados Unidos e a China. A guerra comercial já é uma realidade entre as duas maiores potências globais. Mas chegarão às vias de fato, ou a questão nuclear, que os dois países controlam, pode impedir uma batalha global, que ficaria circunscrita à economia?
Antony Beevor, pelo fato de não ter sido perguntando, não discute a questão. Mas Graham Allison, no notável livro “A Caminho da Guerra — Os Estados Unidos e a China Conseguirão Escapar da Armadilha de Tucídides?” (Intrínseca, 416 páginas, tradução de Cássio de Arantes Leite), postula que a guerra é possível e, ao mesmo tempo, evitável.
Recentemente, num artigo para “O Globo”, o jornalista Guga Chacra disse que Marco Rubio como secretário de Estado do governo de Donald Trump pode ser um pesadelo para o governo de Lula da Silva, quer dizer, para o Brasil. É provável.
Assim como é possível que um amplo alinhamento do Brasil com a China e a Rússia pode ser um pesadelo para os Estados Unidos. O maior parceiro comercial do país de Machado de Assis e Yêda Schmaltz é a China, e não os EUA. Os homens do Agro, que se apresentam em geral como integrantes da direita, têm como interlocutores comerciais, de maneira prioritária, os comunistas chineses. O que prova que dinheiro (o pragmatismo do capital) rima com interesses econômicos e não com ideologias.
A ameaça nuclear está no horizonte, é claro. Mas há outro perigo e vem da China. “É aterrador saber que os chineses estão criando sistemas de armas automatizadas que não requerem a intervenção humana para acelerar as coisas.” Uma guerra com a nova tecnologia pode ser muito perigosa para a humanidade. Pode ser uma guerra sem nenhum limite.