Um dos maiores historiadores da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e da Revolução Russa (nos seus primórdios), Antony Beevor está com câncer (um mieloma múltiplo, que afeta a medula óssea).

Entrevistado pelo “Abc”, Antony Beevor voltará a fazer quimioterapia em dezembro. Assim como Susan Sontag, que não é citada pelo jornal espanhol nem pelo pesquisador, o autor do brilhante “A Segunda Guerra Mundial” (Record, 952 páginas, tradução de Cristina Cavalcanti) — no qual sugere que a maior batalha do século 20 pode ter começado na Ásia, entre a China e o Japão — diz não ter apreço pela linguagem bélica quando se trata de se referir a uma doença como o câncer. “Não creio que se deve falar do câncer utilizando terminologia militar.” É de “mau gosto”, postula.

Antony Beevor diz que está bem, o que o deixa prostrado é a quimioterapia. O historiador, por se considerar afortunado (é um dos pesquisadores mais respeitados do mundo), não sente raiva por ter câncer. “Nem tudo pode ser perfeito.”

Antony Beevor, um dos maiores historiadores britânicos, está com câncer | Foto: Reprodução

A doença não fez Antony Beevor apelar para Deus. Porque é ateu. “Não me descreveria como um completo ateu, e sim como agnóstico. Mas, realmente, não creio em Deus.” (O agnóstico é o ateu que não aprecia o desgaste da palavra ateu.)

A mulher de Antony Beevor, a historiadora Artemis Cooper, é bem-informada sobre ciência e a respeito do tratamento do marido. “Ela às vezes ri de minha ignorância médica. Acredito que o importante é não especular sobre o futuro. É preciso seguir adiante e fazer aquilo que é aconselhado pelos médicos.”

Terceira guerra mundial à vista?

O mestre britânico diz que “a guerra é o nível mais extremo se se quer um conhecimento profundo das virtudes e dos defeitos humanos”. Antony Beevor diz que busca entender a questão do “mal”.

A um “grande” psiquiatra inglês, Antony Beevor perguntou qual era a diferença entre Hitler e Stálin. “Me respondeu, com as habituais reservas, que não se deveria analisar alguém sem tê-lo conhecido. Ainda assim, afirmou que, com alguma certeza, Stálin era paranoico esquizofrênico. De Hitler a única coisa que podia dizer é que tinha um problema de personalidade. Era malvado? Estava perturbado ou louco?” A resposta, de acordo com o psiquiatra, era “não”.

Vladimir Putin e Xi Jinping: perigos para a paz global | Foto: Reprodução

Otto von Bismarck disse que “a única coisa que aprendemos com a história é que ninguém aprende com a história”. O chanceler alemão também afirmou que “só um tonto aprende com os próprios erros”. Antony Beevor diz que é possível aprender com os erros da história. A mídia cobra que historiadores falem do futuro, quando, na verdade, eles se ocupam do passado. “Churchill dizia que estudamos a história para entender o futuro, mas isso é um erro. Nunca entenderemos o futuro porque a história não se repete. (…) Não há uma fórmula para prever o que vai acontecer.”

Ao avaliar os fatos, inclusive aqueles dos quais discordamos, é preciso ter honestidade intelectual. “A honestidade intelectual é a primeira vítima da indignação moral. Há pessoas que, com raiva, estão dispostas a mentir para respaldar seus argumentos, algo muito evidente nas redes sociais.” A raiva e o ressentimento travam, por vezes, o entendimento amplo dos acontecimentos.

Na torcida para que não aconteça uma nova grande guerra, há dirigentes políticos que subestimam fatos e pessoas. Antony Beevor frisa que a ex-chanceler alemã Angela Merkel acreditou, erradamente, que “mais comércio com a Rússia reduziria a probabilidade de guerra. O resultado foi um erro de cálculo”.

Os europeus, como franceses e ingleses, subestimaram Adolf Hitler, na Alemanha, porque não queriam uma nova guerra destrutiva, como a Grande Guerra de 1914. “Fizemos o mesmo com [Vladimir] Putin, pensando que ninguém iniciaria outra guerra terrestre na Europa. E agora vemos a invasão da Ucrânia.”

Antony Beevor sublinha que, “depois da queda do Muro de Berlim”, em 1989, o “Ocidente pensou que podia reduzir o gasto com defesa, porém subestimamos o risco. Agora vemos que isto tem alentado ditadores a crer que seus adversários são incapazes de defender-se e nos deixa em um momento muito perigoso”. Putin parece ter percebido que a Europa, por exemplo, rosna, mas, sem os dentes dos distantes Estados Unidos, não morde.

“Não estou dizendo que estamos à porta de outra guerra mundial, mas sabemos pela história que os conflitos globais surgem da acumulação de tensões locais. Hoje há tensões na Coreia [do Norte], Ucrânia, Taiwan, Irã e Síria. Isto deveria ser um sinal de alerta, não necessariamente uma certeza, mas uma possibilidade. Mais preocupante é a atitude russa com suas armas nucleares táticas”, assinala Antony Beevor. Putin é um risco à paz global e não respeita, por exemplo, a ONU e não teme a Otan.

O perigo das armas automatizadas da China

O “Abc” inquire se a batalha de Israel em Gaza tem “características de genocídio”. A resposta e Antony Beevor: “Estamos presenciando limpeza étnica dos dois lados. De um lado, a limpeza étnica levada a cabo por Israel nos territórios ocupados da Cisjordânia e, por suposto, em Gaza. Mas a limpeza étnica aparece nos discursos dos palestinos”.

A cautela do historiador é compreensível. Mas, no momento, Israel está massacrando os palestinos, e não apenas buscando matar membros ativos do Hamas (um grupo que, sim, é terrorista e, deste modo, não deve ser enfrentado com luvas de pelica). A retórica palestina — ainda que se leve em consideração o gravíssimo atentado em Israel, que resultou em mais de mil mortes — não equivale à prática israelense.

Para piorar as coisas, Israel pode ganhar a guerra — está vencendo por larga margem a “batalha” contra o Hamas, o Hezbollah e o Irã — e perder a paz para sempre. “Sobreaviso” e “tensão” serão as palavras eternas para os israelenses.

Há quem postule que a grande guerra do século 21 se dará entre os Estados Unidos e a China. A guerra comercial já é uma realidade entre as duas maiores potências globais. Mas chegarão às vias de fato, ou a questão nuclear, que os dois países controlam, pode impedir uma batalha global, que ficaria circunscrita à economia?

Antony Beevor, pelo fato de não ter sido perguntando, não discute a questão. Mas Graham Allison, no notável livro “A Caminho da Guerra — Os Estados Unidos e a China Conseguirão Escapar da Armadilha de Tucídides?” (Intrínseca, 416 páginas, tradução de Cássio de Arantes Leite), postula que a guerra é possível e, ao mesmo tempo, evitável.

Recentemente, num artigo para “O Globo”, o jornalista Guga Chacra disse que Marco Rubio como secretário de Estado do governo de Donald Trump pode ser um pesadelo para o governo de Lula da Silva, quer dizer, para o Brasil. É provável.

Assim como é possível que um amplo alinhamento do Brasil com a China e a Rússia pode ser um pesadelo para os Estados Unidos. O maior parceiro comercial do país de Machado de Assis e Yêda Schmaltz é a China, e não os EUA. Os homens do Agro, que se apresentam em geral como integrantes da direita, têm como interlocutores comerciais, de maneira prioritária, os comunistas chineses. O que prova que dinheiro (o pragmatismo do capital) rima com interesses econômicos e não com ideologias.

A ameaça nuclear está no horizonte, é claro. Mas há outro perigo e vem da China. “É aterrador saber que os chineses estão criando sistemas de armas automatizadas que não requerem a intervenção humana para acelerar as coisas.” Uma guerra com a nova tecnologia pode ser muito perigosa para a humanidade. Pode ser uma guerra sem nenhum limite.