Alexandre de Moraes tem razão na sua “guerra” contra Elon Musk, o quase-Ripley da vida real
14 abril 2024 às 00h02
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A rigidez dos que patrocinam o politicamente correto precisa, de alguma maneira, ser confrontada. Porque, se a onda persistir e se tornar dominante, como está se tornando, até o humor, que tem certo salvo-conduto, será em breve banido, expurgado.
As imagens da excelente série “Ripley” (exibida pela Netflix), do diretor Steven Zaillian, são de uma beleza extraordinária. São quadros — hora clássicos (a luz do pintor italiano Caravaggio está sempre presente, como se personagem fosse — além do claro-escuro, chiaroscuro, da arte e da vida), hora impressionista, hora expressionista. O clima noir prevalece. Trata-se de uma adaptação da clássica história da escritora americana Patricia Highsmith.
“Ripley” não é uma história para pessoas de estômagos e cérebros fracos. O protagonista, Thomas Ripley, é um golpista que, “evoluindo”, se torna assassino. Trata-se da clássica história do duplo, com o assassino se tornando outro, incorporando uma identidade nova, mas sem perder a anterior. Lembra, por vezes, o ótimo conto “William Wilson”, do prosador e poeta americano Edgar Allan Poe.
A história se passa na Itália — Nápoles, Roma, Palermo —, com personagens desgarrados, que vivem uma festa complexa e, às vezes, violenta. É um drama sobre ricos e pelo menos um alpinista social, Tom Ripley. Há certos maneirismos e falseios, mas, em regra, a história é bem conduzida e, portanto, convincente.
Não vou negar: aqui e ali, ao ver a série, num processo esdrúxulo, comecei a torcer para Ripley não ser preso. Porque, embora seja o vilão, é também uma espécie de herói… do mal. Como o Coringa, personagem do filme dirigido por Todd Phillips.
Num romance (filme) tradicional, de caráter moralizante — a fabulosa Patricia Highsmith era avessa a isto —, a história terminaria com Ripley preso, afinal matou duas pessoas e enganou várias outras, e condenado pela justiça. Aí dormiríamos tranquilos. Com a consciência em paz — na geladeira.
O que uma onda moralizante pode determinar já ou no futuro, como nos tempos do macarthismo americano? Que a ambiguidade, o confronto entre luzes e sombras, seja banida. Ripley teria de ser condenado à prisão perpétua ou à cadeira elétrica para agradar a nossa boa consciência. O cantor e compositor Chico César merece menção: “Deus me proteja de mim/ e da maldade de gente boa./ Da bondade da pessoa ruim”.
Pois, neste caso, se ocorresse — o que felizmente não ocorre na série, de um realismo implacável —, “Ripley” teria sido destruída. O mal existe e nem sempre é penalizado. A arte, se “cinema” é arte, pode iluminar os escaninhos da mente e do comportamento humano — mostrando-os, mais do que puramente denunciando-os.
A Resistência democrática do Supremo
Por que falo de “Ripley” se, na verdade, quero falar do bilionário Elon Musk — por quem não tenho qualquer admiração, mas não deixo de respeitar suas qualidades empreendedoras — e do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, por quem, apesar de avaliar que às vezes excede, tenho apreço?
Apesar de respeitar Alexandre de Moraes, há alguma coisa estranha no ministro — e talvez a coisa estranha esteja no meu ser — que me incomoda. Fico com a impressão de que há, de parte do integrante do STF, uma espécie de desejo de controlar tudo, de produzir o bem a partir do expurgo total do mal.
O mundo de Alexandre de Moraes é o do império da lei e, neste sentido, estou ao seu lado. Mas sinto alguma coisa nos “poros” (um arrepio dos pêlos?) de que o ministro está tentando construir uma sociedade perfeita — uma utopia. Temo mais os utópicos que os distópicos. Porque os utópicos geraram Lênin, Stálin, Mao Tsé-tung, Pol Pot, Fidel Castro, Che Guevara (para mim, pior, dada sua violência, do que Fidel Castro) e, até, Hitler.
As sociedades que “funcionam” por música, certinhas como um relógio suíço, não me agradam nem me interessam. Até porque não existiram, não existem e nunca existirão. O mundo sempre terá santos, colunas do meio e Ripleys. Sempre será imperfeito — e isto talvez seja o sal da vida e o mote da arte.
Porém, diferentemente dos ditadores antidemocráticos, como os citados, Alexandre de Moraes é um agente da democracia — o que me agrada. Por isso, o respeito, mas ainda não sei se o admiro.
Diz-se, comumente, que o Brasil não vive uma ditadura porque o Exército não quis apoiar o projeto de quartelada do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro. De fato, procede.
Mas houve outra Resistência democrática a partir das trincheiras — civis, constitucionais e sem armas letais — do Supremo Tribunal Federal. Ministros como Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes, Edson Fachin e, sobretudo, Alexandre de Moraes resistiram, com bravura, coragem e competência, às articulações golpistas do bolsonarismo. A Resistência, com R maiúsculo, do STF merece ser louvada em verso e prosa.
Sabe-se que o bolsonarismo planejava prender e, quem sabe, assassinar Alexandre de Moraes. O que prova que um indivíduo faz história — portanto, a muda… para o bem ou para o mal. No caso do ministro, para o bem.
A coragem de Alexandre de Moraes é a dos que, acreditando na lei, nada temem. O império dele é o da lei. Eu gostaria de saber se, ao menos em determinado momento, o ministro teve medo das hordas selvagens do bolsonarismo. Talvez sim. Talvez não. Certas coragens são suicidas. A do magistrado certamente não é.
Liberdade de expressão e liberdade do lucro
Se não teve medo da força fundamentalista do bolsonarismo, por que Alexandre de Moraes teria receio da força transnacional de Elon Musk, o dono do X — o ex-Twitter? O nome X, por sinal, ainda não pegou.
Como todas as pessoas de bom senso, Alexandre de Moraes quer redes sociais sob certo controle, para evitar excessos — crimes como a propagação de ódio e fake news. Daí as investigações sobre os discursos e ações bolsonaristas e outras.
A Justiça age com correção — sobretudo devido à falta de ação do Legislativo (Arthur Lira, porta-voz da ignorântsia patropi na Câmara dos Deputados, e Rodrigo Pacheco, do Senado) e do Executivo (presidente Lula da Silva) — ao cobrar que as redes sociais sejam espaços mais decentes e civilizados. Não se trata de autoritarismo, e sim de impedir o avanço da extrema-ignorância da extrema-direita brasileira (com o apoio da norte-americana).
Ao contrário do que dizem os liberticidas — liberais que, dormindo, parecem não perceber que a extrema-direita opera para solapar a democracia, criando simulacros de regimes abertos mas ditatoriais ou semi-ditatoriais —, Alexandre de Moraes, ao propor a regulação das redes sociais, não vai de encontro à liberdade de expressão.
Pelo contrário, Alexandre de Moraes, assim como outros ministros, está ao lado dos que defendem a liberdade de expressão. O que está dizendo, e muitos não querem ouvir — optando por distorcer suas palavras e atos —, é que, em nome da liberdade de expressão, não se pode dizer e falar o que quiser.
O que Elon Musk defende não é, a rigor, a liberdade de expressão. Sua trincheira é outra: a defesa de seus bilhões. Ao fazê-la, para articular um exército de aliados, conecta-se às direitas, como as articuladas pelos ex-presidentes americano Donald Trump e brasileiro Jair Bolsonaro.
A identidade até parece ideológica, e de algum modo é, mas, para o empresário, trata-se de um negócio, no qual os direitistas dos Estados Unidos e do Brasil, assim como o próprio Alexandre de Moraes — e, em certa medida, todos nós que navegamos nas redes sociais (que dizemos nossas, quando, na verdade, somos servos voluntários das big techs) —, são produtos ou mercadorias.
O historiador marxista inglês Eric Hobsbawm dizia que a globalização era, de algum modo, uma tentativa de o capitalismo atuar acima dos Estados nacionais.
As big techs — Google e Meta (Facebook e Instagram) e os negócios de Elon Musk, como o X — se consideram acima dos países e fazem o impossível para não cumprir as leis nacionais.
Suas alegações são pueris, mas, quando falam em liberdade de expressão, começam a receber apoios dos grupos de direita e, também, de liberais. Na verdade, a única liberdade que Elon Musk (Tesla, X, SpaceX), Mark Zuckerberg (Facebook, Instagram), Sam Altman (da OpenAI, criadora do ChatGPT) e Sundar Pichai (CEO do Google) defendem é a do lucro. A defesa da liberdade de expressão só interessa a eles se envolver suas altas taxas de lucro.
Ao fazer a defesa de Alexandre de Moraes — que protege a civilização, a democracia —, estou a defender o apagamento da direita, o cancelamento de seu ideário? Não.
A democracia é altamente inclusiva — acolhendo inclusive aqueles que a atacam. Não há sociedade de fato democrática sem a presença de forças divergentes — como direita, esquerda e centro.
A direita tem o direito de se manifestar e nem tudo o que diz se trata de equívoco. Então, a regulação das redes sociais não pode se tornar uma espécie de censura do pensamento de direita. Deve-se operar contra os excessos, mas não contra aqueles que professam pensamentos — democráticos — diferentes do nosso. Mesmo o bolsonarismo, que não é democrático, tem o direito de expor suas (parcas) ideias — gostemos ou não.
É preciso ficar atento aos utopistas, que, segundo o filósofo Isaiah Berlin, podem ser mais conservadores do que parecem. Começam controlando a direita, depois tentam manietar os liberais e, por fim, partem para cima da esquerda. Por isso torço — e muito — para que Alexandre de Moraes não se torne o Simão Bacamarte do Judiciário.