Alberi Vieira dos Santos, o segundo Cabo Anselmo, e a outra guerra do major Curió
29 setembro 2020 às 15h17
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Livro revela que o ex-sargento Alberi Vieira dos Santos atraiu para a morte o grupo do ex-sargento Onofre Pinto, da VPR, e que Curió, que devastou a Guerrilha do Araguaia, comandou extermínio no Paraná. Militares usaram fazenda em Goiás para tortura
(((Resenha publicada no Jornal Opção na edição de 6 a 12 de novembro de 2005)))
Em 1965, sob orientação de Leonel Brizola, que estava no Uruguai, o coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório e o ex-sargento da Brigada Militar do Rio Grande do Sul Alberi Vieira dos Santos comandaram a frustrada Guerrilha de Três Passos (RS). Com o cartel de “brizolista” (foi integrante do Grupo dos Onze), de ex-militar que tentou organizar a luta armada, Alberi Vieira dos Santos se tornou um importante homem de esquerda. Com a publicação do livro “Onde Foi Que Vocês Enterraram Nossos Mortos?” (Travessa dos Editores, 366 páginas), do jornalista Aluízio Palmar, a história arranca as vestes do mito e o mostra como “cachorro” da ditadura civil-militar.
Depois de uma pesquisa rigorosa, que lhe custou vários anos e sacrifícios, Palmar resgata uma história que, até agora, havia sido registrada episodicamente. O jornalista conta que, abandonando as hostes do brizolismo, Alberi ganhou uma missão de seus chefes do Centro de Informações do Exército: atrair guerrilheiros que estavam no exterior para projetos fantasiosos e mortais no Brasil. Com a guerrilha destroçada no país — a Guerrilha do Araguaia estava liquidada —, os militares planejaram, com eficiência, matar os remanescentes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Primeiro, usaram o Cabo Anselmo, que entregou sua própria companheira, a paraguaia Soledad Barret Viedma, que estava grávida, entre outros. Depois, recrutou Alberi, que não teve muito custo para conquistar a confiança dos esquerdistas. Vivendo com dificuldade no exterior, fragilizados, na versão de Palmar, e também iludidos pelo ideal guevarista do foco revolucionário, os guerrilheiros retornaram e, mesmo sendo tão poucos, acreditaram que poderiam derrubar a, então, muito organizada estrutura militar do governo.
Entre os guerrilheiros que foram seduzidos por Alberi e, em seguida, fuzilados estavam Joel José de Carvalho, de 26 anos, Daniel de Carvalho, de 28 anos, José Lavéchia (que “esteve com Lamarca no Vale da Ribeira e passou pelo campo de treinamento de guerrilhas em Cuba”), de 55 anos, Onofre Pinto (o recrutador de Carlos Lamarca para a VPR, um dos mais célebres guerrilheiros), de 36 anos, Víctor Carlos Ramos, de 30 anos, e o argentino Enrique Ernesto Ruggia, de 18 anos. Alberi foi buscá-los na Argentina e os convenceu que havia uma base para a articulação de um novo foco guerrilheiro, num sítio no Paraná. Mesmo Lavéchia e Onofre Pinto, os mais experientes, acreditaram na conversa mole e sedutora do ex-sargento. Palmar escapou por que suspeitou do que contava e por que entendia que, em 1974, não havia condições de enfrentar a ditadura.
Uma das fontes do livro de Palmar é o ex-agente do Centro de Informações do Exército Marival Chaves, que, numa carta para Cecília Coimbra, do grupo Tortura Nunca Mais, esclareceu: “Tal operação [a Operação Juriti], que utilizava como infiltrado o ex-sargento da Brigada Militar do Rio Grande do Sul Alberi, que na ocasião [1974] transitava pelo Chile e Argentina com o propósito de atrair brasileiros refugiados políticos naqueles países, consistiu na montagem pelo CIE e Batalhão do Exército, com sede em Foz do Iguaçu, de uma área fictícia de treinamento de guerrilha para que Onofre e seu grupo exercessem atividade e tivessem um local seguro em território brasileiro”.
Marival Chaves acrescenta: “Seis indivíduos foram presos e sumariamente assassinados assim que chegaram à área fictícia de treinamento de guerrilha, não sem antes terem sido interrogados. O sétimo [além dos citados, Marival arrola Gilberto Faria Lima, o Zorro], Onofre Pinto, foi ‘cantado’ para atuar como infiltrado do CIE. Aceitou a proposta em troca da possibilidade de continuar vivo e chegou até a ser libertado para ir ao Paraguai sob um forte esquema de vigilância velada”.
O que havia sido negociado por militares subalternos foi desautorizado pelo general Miltinho Tavares, chefe do CIE. A versão de Marival Chaves: “De retorno ao território brasileiro Onofre já tinha decretado sua sentença de morte. A cúpula do CIE decidiu eliminá-lo em razão da sua condição de ex-sargento do Exército — sua morte serviria como lição para prevenir eventuais dissidências nos quadros das Forças Armadas — e a consequente periculosidade daquele ativista como dirigente de uma organização da esquerda revolucionária, que o classificava como indivíduo pouco confiável”.
As informações de Marival Chaves são precisas. Entretanto, Palmar fornece dados novos — como os nomes dos executores dos seis guerrilheiros —, que vou expor mais à frente.
Infiltração na esquerda
“Durante minha pesquisa nos arquivos fiquei impressionado com as informações que chegavam do exterior para a repressão”, diz Palmar. Outros guerrilheiros — Madalena Lacerda e seu companheiro, Gilberto Giovannetti — haviam sido “virados” pelos militares. “A 13 de julho de 1974, ao descerem na rodoviária de Curitiba, onde teriam um ponto com o ex-sargento Alberi, Madalena e Gilberto foram levados para um sítio no interior de Goiás e lá fizeram um pacto com os militares”, anota Palmar. Madalena e Giovannetti foram atraídos para o Paraná, provavelmente para serem mortos, mas os militares preferiram mantê-los vivos, em busca de informações.
Voltemos a Alberi. “Onofre, Lavéchia, Daniel, Joel, Víctor e Ernesto saíram de Buenos Aires — acompanhados por Alberi — no dia 11 de julho de 1974, cruzaram no dia 12, em Santo Antônio do Sudoeste, Paraná, a fronteira da Argentina com o Brasil e foram para um sítio ou serraria que seria a ‘estrutura da organização’”, relata Palmar.
Livro garante que Onofre Pinto não traiu companheiros da VPR
A Operação Juriti, na qual foram mortos os seis guerrilheiros, era comandada pelos coronéis José Teixeira Brandt e Paulo Malhães, do Centro de Informações do Exército. O tenente Aramis Ramos Pedroso, do Batalhão de Fronteiras de Foz do Iguaçu, teria comandado a cilada na qual foram mortos os seis guerrilheiros. No capítulo “Assim aconteceu o caso”, o ponto forte do livro, Palmar conta uma história surpreendente.
Ao chegar ao Brasil, em julho de 1974, os guerrilheiros entraram “num veículo Rural Willys, dirigido por Otávio Camargo [agente da repressão, com nome de guerra], e seguiu em direção do sítio de Niquinho Leite [tio de Alberi], passando pelas localidades de Valdomeira, Alto Alegre e Boa Vista do Capanema”. Eles chegaram ao sítio no dia 12 de julho de 1974. “Aparentemente estava tudo normal. Para Onofre, Lavéchia, Víctor, Enrique e os dois irmãos Carvalho eles encontravam-se numa base camponesa da organização revolucionária e Alberi e Otávio Camargo eram militantes da mesma. Ledo e fatal engano. O sítio não era infra da VPR; Niquinho era um inocente útil sendo usado pelo sobrinho; Otávio, um membro do Centro de Inteligência do Exército; e Alberi, o ‘cachorro’ que estava levando-os para uma armadilha”, revela Palmar.
“A Operação Juriti”, historia Palmar (que escreve muito bem), “estava em marcha comandada pelo ‘doutor César’ (coronel José Brandt Teixeira) e pelo ‘doutor Pablo’ (coronel Paulo Malhães). Ela havia começado no Chile, teve sua continuidade na Argentina e agora chegava à sua fase final. Durante a viagem pela Argentina, desde que saíram de Buenos Aires, os exilados foram monitorados por agentes do CIE. Marival Chaves foi um deles. Toda a operação foi controlada a distância pelos coronéis Brandt e Malhães. Os agentes fizeram rodízio e acompanharam o retorno dos revolucionários até eles chegarem ao sítio de Niquinho”.
Presença do major Curió no massacre do Paraná
Agora, uma das revelações mais importantes do livro de Palmar: “Para cumprir a ordem de extermínio, um grupo comandado pelo cão de guerra major Sebastião Rodrigues Curió [Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió], que usava o pseudônimo de doutor Marco Antonio Luchini, iria esperar no Caminho do Colono, seis quilômetros mato adentro do Parque Nacional do Iguaçu”.
“Ao anoitecer do dia 13, Alberi e Otávio saíram com Joel, Daniel, Víctor, Lavéchia e Enrique para ‘executar a primeira ação revolucionária, uma expropriação na agência do Banco do Estado do Paraná, em Medianeira’. De acordo com o plano, após a ação eles iriam para um acampamento dentro do Parque Nacional do Iguaçu. (…) ‘Chegamos companheiros’, disse Alberi enquanto descia do veículo. O grupo caminhou um pouco e de repente, antes de chegar à clareira, fez-se no meio mato um clarão e fuzilaria abundante. Otávio ficou junto ao carro, Alberi correu e se jogou no solo, Lavéchia deu um tiro a esmo antes de cair. Após o tiroteio a floresta foi tomada de silêncio, apenas interrompido pelo barulho dos coturnos dos militares do grupo de extermínio que saíam de seus esconderijos para fazer um balanço da chacina.”
Mortos cinco guerrilheiros, que não deram nenhum trabalho, pois confiavam em Alberi, os militares prepararam a armadilha para matar Onofre, o “Negão”. A narrativa de Palmar: “Desceram [da Rural Wyllis] caminharam alguns passos e de repente Onofre correu. Pressentiu traição e disparou ao sentir que havia caído numa emboscada. Na clareira, um outro negão, mais alto e mais forte que ele, saiu do criciumal e o deteve. Era o temido Lencato [espécie de Osvaldão da direita], braço direito do major Curió, que havia voltado com o grupo de extermínio e estava desde cedo a postos, pronto para pegar o chefe do grupo e levá-lo para Foz do Iguaçu”.
Segundo Palmar, “durante o trajeto até Foz [do Iguaçu], Onofre foi ‘cantado’ por Alberi para abrir mão de suas convicções e passar a trabalhar para a repressão. Disse que os outros cinco estavam mortos e que ele seria poupado caso ‘colaborasse’. (…) ‘Olha, tchê, se você quer sair vivo dessa vai ter de colaborar’ [ameaçava Alberi]. Onofre olhava para o ex-sargento com desprezo. (…) Olhava fixamente e tenso para Alberi. Seus nervos faciais tremiam. Manteve silêncio durante todo o trajeto. Não perguntou, não reclamou nem lamentou ou acusou. (…) Ficou quieto e apenas assentia com a cabeça todas as vezes que Alberi e Lencato perguntavam se ele iria colaborar”.
O capitão Areski de Assis Pinto Abarca, ambicioso, tentou negociar a “virada” de Onofre. Mas, como aponta Palmar, “ele nem de longe imaginava que naquela noite a sorte de Onofre estava sendo decidida pelos altos escalões do Centro de Informações do Exército em Brasília. Os homens da inteligência consideravam o Negão da VPR como uma ‘bananeira que já deu cacho’. O mítico comandante da VPR, o dirigente revolucionário mais importante depois de Lamarca e [Carlos] Marighella, o sargento cassado em 1964 e trocado pelo embaixador americano [Charles Burke Elbrick] em setembro de 1969 já não era o mesmo. Estava desmoralizado”.
Ex-guerrilheiros suspeitam que Onofre negociou com os militares e sobreviveu, talvez depois de uma (suposta) cirurgia plástica como a do Cabo Anselmo. Palmar prova que não: “Onofre não entregou nada, pois não tinha nada para entregar e nem serviu para ser usado com isca. Até que o capitão Paulo Malhães chegou a aceitar o pedido do capitão Areski para usar Onofre como chamariz, mas a ordem veio de cima. Não poderia haver sobreviventes na Operação Juriti, ninguém deveria ser poupado. ‘Temos de acabar com ele para dar o exemplo e inibir a possibilidade de novas deserções’, teria respondido o implacável general Miltinho Tavares, chefe do CIE”.
Baseado em fontes militares, tudo indica que Otávio Camargo (o jornalista preserva o nome do militar) contou-lhe a história, por intermédio de amigos, Palmar relata: “A ordem era matar e desaparecer com o cadáver em um local bem longe de Foz do Iguaçu. E assim aconteceu. Ali mesmo na casa de hóspedes, Onofre Pinto morreu com um tiro na cabeça, seu ventre cortado e entre suas tripas foi colocada uma caixa de câmbio de um jipe que até então estava abandonada num canto da casa. (…) Lavéchia, Joel, Daniel, Víctor e Enrique foram assassinados e enterrados no Parque Nacional do Iguaçu. Quanto a Onofre, seu corpo foi posto na Rural Wyllis e levado para fora de Foz do Iguaçu. No meio da noite, os militares subiram pela antiga estrada de acesso a Guaíra e antes de chegarem a Santa Helena jogaram o corpo nas águas do Rio São Francisco Falso. Seis anos depois a região foi inundada para formar o Lago de Itaipu”.
Em 1979, depois da morte do irmão José, Alberi foi assassinado. Suspeita-se que seus antigos aliados militares podem tê-lo matado, pois seu corpo foi “atingido por quatro tiros de pistola nove milímetros, arma privativa do Exército”. Alberi escrevera relatórios e planejava publicar um livro. Um amigo de Alberi, Severino Miola, que sabia da história dos relatórios, foi morto pelo policial Floriano Ojeda. Este disse: “Eu não quero te matar, mas estão me obrigando”. A história é parecida com a do assassinado do prefeito de Santo André Celso Daniel, o Vlado Herzog (como percebeu José Maria e Silva, no Jornal Opção) que a esquerda petista prefere ignorar. Porque Celso Daniel é vítima, talvez, da ambição política e financeira de integrantes e aliados do PT. É provável que tenha sido “justiçado”.
Há histórias muito interessantes no livro de Palmar — um trabalho seriíssimo e nuançado —, que ficam para o leitor descobrir. Uma delas é a de Roberto De Fortini, que criou uma poderosa estrutura para financiar a guerrilha. A outra é que a binacional Itaipu teria colaborado com a Operação Condor.
A guerra do Major Curió em Goiás
Goiás ganha certo destaque no livro de Aluízio Palmar. Uma carteira de identidade de Alberi Vieira dos Santos foi expedida no Estado.
“César [Cabral] foi sequestrado e levado na calada da noite desde Foz do Iguaçu para um sítio do Exército no Estado de Goiás, e ali submetido a um rigoroso interrogatório. Os militares tinham informações de que eu [Aluízio Palmar] andava na região e queriam extrair do César a minha localização.” Trata-se de uma história que merece uma reportagem.
Em dezembro de 1975, no governo do presidente Ernesto Geisel, um comando do Exército brasileiro sequestrou quatro paraguaios em Foz do Iguaçu. “Mais uma vez a mão do major Curió baixava na fronteira. Agora era uma ação secreta da Operação Condor e com a ordem de levar os quatro exilados paraguaios para Goiás, provavelmente para Anápolis. Durante 24 dias eles ficaram na mesma casa em que, seis meses antes, esteve também sequestrado o casal Madalena Lacerda e Gilberto Giovannetti”, aponta Palmar. (Euler de França Belém)