Agosto, nos coloridos da vida, entre os ventos do desgosto

31 julho 2023 às 07h27

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Matéria publicada originalmente em 03 agosto 2020
Marcos Antônio Ribeiro Moraes
Especial para o Jornal Opção
“Sopra, vento, sopra, vento, ai, vento do mês de agosto, passa por sobre meu rosto e sobre o meu pensamento. Vai levando meu desgosto!” — Cecília Meireles

Já estamos no mês de agosto — nossa que susto! —, passamos da metade do ano, e que ano, meu Deus. Agosto, para muitos, é um mês que se destaca no calendário, além de suas cálidas ventanias, é também carregado de tabus. Considerado o mês dos desgostos, dos loucos e por aí vai. Quantas interdições que disso decorre. Ou ao menos decorria em outros tempos. Era comum nesse mês evitar casamentos, fazer mudanças, viagens e festas.
Mas, por falar em loucuras e desgostos, para este nosso ano em curso, não bastou até agora apenas um mês. Diante dos fortes impactos da pandemia de Covid-19, nos últimos quatro meses, nossos dias não têm sido de bom gosto. Ao contrário, marcados por muitas incertezas, medos, inseguranças e desgostos. Estamos sofrendo a cada dia um golpe de realidade, o que em psicanálise chamamos de retorno do real, ou seja, o atravessamento de uma forte experiência, que nem sempre conseguimos dar nomes e fazer uma elaboração psíquica de imediato. Isso é o que Jacques Lacan (1961-62) denominou por um arrombamento do real, ao se referir a perdas e condições que produzem efeitos traumáticos na vida das pessoas. A esse respeito, Sigmund Freud (1920) usa a imagem de uma vesícula viva para dizer que o aparelho psíquico possui uma membrana protetora contra excessos de excitações advindas da realidade. O que nos ajuda a entender que, psiquicamente, o sujeito não possui condições para suportar uma exposição ininterrupta a esse real. Por isso, carece de uma circulação, entre estações, onde possa repousar. Nesse caso, poderíamos pensar na necessária inscrição de nossas experiências, nos registros imaginário e simbólico. Não seria, portanto, saudável que essa circulação dinâmica fosse interrompida, ou marcada por fixações cruas no negativo, na dor e em perdas tão avassaladoras. Quando isso ocorre, mergulhamos em diferentes formas, muitas vezes graves, de sintomas e sofrimentos.
Sabemos que, em tais condições, cada um tenta se virar como pode. Em nosso contexto atual, as reações à tragédia mundial da pandemia do novo coronavírus têm provocado diferentes sintomas e posicionamentos extremos. De um lado, sujeitos que insistem em negar que o trem da história inevitavelmente mudou a velocidade de nossa viagem, e possivelmente também o seu rumo, ao menos que seja para um itinerário melhor. Essas posturas negacionistas podem ser sinais de condições comparáveis a estados psicóticos ou perversos – modos de loucuras coletivas — marcadas por certezas e esclarecimentos que desconsideram o papel das ciências e se expressam em forma de auto verdades. De outro lado, vemos aqueles que tendem a se afogar na dor provocada por tantas perdas e horrores. A esse respeito, diferentes agências de notícias têm veiculado informações atestando que o número de pessoas, vítimas de crises agudas de ansiedade e depressão, duplicou a partir do último mês de abril e que o atendimento a casos de suicídio e também de tentativas, aumentou consideravelmente com a pandemia de coronavírus.

Na verdade, se há um ponto comum entre tais posturas extremas, possivelmente esse seria o desespero, o medo de perder a própria vida, perder familiares, amigos e não reaver a vida que se levava antes dessa pandemia. Duas formas de reação ao confinamento imposto como medida sanitária, embrutecer ou sucumbir. Aqui me lembro do que diz Nietzsche (1886), em “Além do Bem e do Mal”: “Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você”. Na verdade, as circunstâncias em que vivemos atualmente interpelam nossa capacidade psíquica de lidar com o sofrimento, as adversidades, as restrições e, por que não, com catástrofes, que inegavelmente fazem parte da história da humanidade. Mas não podemos dizer que esse seria um modo universal de reação ou o modo de reagir verificado em diferentes povos, culturas e economias. Exemplo disso é a grande diferença acerca da velocidade e dos impactos traumáticos com que cada país está atravessando e, se podemos falar assim, voltando à normalidade, após a onda de contaminação pelo coronavírus.
Sabemos também que, de diferentes formas, já vínhamos sofrendo uma crise global, com situações que desafiavam a possibilidade da vida em nosso ecossistema: perda na qualidade e quantidade de água, devastações e queimadas criminosas que, a cada dia, nos sufocavam mais e mais. A fome, o desencanto pela vida e os adoecimentos psíquicos diversos. Chegamos ao final do século 20 arrastando-nos, com graves questões que acentuavam pensamentos milenaristas, ligados ao entendimento de que já se aproximava o fim do mundo. Há quem diga que esse sofrimento se arrastou até o marco histórico da atual pandemia e que o século 21 começa a partir de agora. Foi isso que afirmou recentemente a primeira mulher a assumir a presidência da Fio Cruz, Nísia Trindade, ao fazer um balanço do trabalho atual da fundação, “essa pandemia é o evento histórico que inaugura o século 21”.
Sabemos que o fim de um século e o início de um novo costuma ser marcado pela formulação de pensamentos milenaristas acerca do fim do mundo, de destruições e punições divinas. Pensamentos esses, quase sempre de base judaico-cristãs. Se procurarmos conhecer o que pensam e como vivem as outras tradições e culturas, no que se refere a essa questão, certamente iremos nos surpreender, ao verificarmos que culturas, como a africana e a indígena não lidam com adversidades e catástrofes de forma assim tão pessimista e negativa. Não é comum que se sintam sem saída ou, condenados por seus Deuses a um fim trágico. Como canta Maria Bethânia, “a menina dos olhos de Oyá”, forte expressão das nossas raízes afro-brasileira, “Você verá que é mesmo assim, que a história não tem fim! Continua sempre que você responde “sim” à sua imaginação. À arte de sorrir cada vez que o mundo diz “não”! Temos outra prova disso, ao constatarmos que, desde o início da colonização, esses povos sofreram diferentes formas de agressão, deportação, cativeiro, epidemias decorrentes do contato com os colonizadores, entre outras, sem sucumbirem até hoje à dizimação. Mas, para essas culturas, a morte não é vista com tanto pavor e ausência de sentido, possivelmente por tratarem esse relevante fragmento do real no campo simbólico por meio de longos rituais, que marcam o atravessamento dessa experiência.
De outra parte, as culturas ditas civilizadas, fortemente marcadas pela razão instrumental, com suas bases humanista e iluministas, foram sempre se distanciando dos suportes rituais, incorrendo numa condição de empobrecimento do repertório simbólico, do valor da vida, sobretudo da vida do outro, daqueles que consideram como diferentes e ameaçadores. Refletindo sobre essas questões, Freud (1915) nos alerta que, a negação da própria morte e a inclinação ao assassinato daqueles que lhes são estranhos seria uma característica que marca o sujeito moderno civilizado. Essa observação parece ser bastante atual. Sabemos que aquilo que negamos também pode nos aprisionar. Nesse caso, o medo da morte e do diferente muitas vezes mantém o sujeito inseguro, melancólico, ressentido e fatalista, impedindo-o de apreciar e dizer sim à vida.

Ailton Krenak, líder indígena, publicou em 2019 um belo livro de bolso, intitulado “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo”. Eis um recado bem-humorado para os “povos civilizados”. A epígrafe desse livro é feita em forma de um convite que nos desafia a sermos criativos, como uma forma possível de saída do nosso confinamento psíquico, que pode ser mais grave do que aquela imposta pela segurança sanitária. Ailton diz: “Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos. Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos”.
É de um indígena que nos vem, de forma assim tão leve, uma proposta que é possível de ser colocada em prática, mesmo que ainda estejamos em situação de isolamento social. Ele nos convida a “furarmos o confinamento”, não por uma postura negacionista, mas nos valendo da potência de nossa capacidade psíquica para tratar a crueza do real enquanto finitude da vida, nos valendo da imaginação e da via simbólica. De tal forma, desviaríamos nosso olhar do abismo, que nos cega e hipnotiza, sobretudo pela avalanche de números e imagens que vamos mirando nas telas eletrônicas, num verdadeiro espetáculo de horror, em que as vítimas são reduzidas a números sem nomes, espetáculo que não nos ajuda a fazer memória nem ritos que viabilizem a elaboração do luto daqueles que estamos perdendo. Retirar os olhos do abismo, conseguir saltar, não para o fundo do abismo, mas de paraquedas coloridos. Imagem que evoca a possibilidade de crescimento, abertura às diversidades, dizer sim à vida, sempre como possibilidade. Uma passagem do horror ao encanto pelo cosmos. Os paraquedas nos permitem, à distância, planando sobre a terra, vê-la em uma amplitude maior, abrir o zoom, ver o que temos feito com nosso planeta, com a vida, com nós mesmos e uns com os outros.
Mas já é agosto, e vale lembrar que esse não é somente o mês das ditas forças negativas. Por aqui, agosto é também o tempo no qual arrebentam, como paraquedas coloridos, nas matas, ladeando nossas rodovias e avenidas, lindas copas de ipês. A natureza sempre cumpre a sua parte nessa lição, construindo seus lindos paraquedas coloridos. Fica a dica.
Marcos Antônio Ribeiro Moraes é psicanalista, membro da APPOA e professor da PUC-GO. É colaborador do Jornal Opção.
Referências
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das letras, 2019.
FREUD, S. Reflexões para os tempos de guerra e morte. Rio de Janeiro: Imago, 1915.
FREUD, S. Além do princípio do prazer (1920). Rio de Janeiro: Imago, 1980.
LACAN, J. O Seminário 9 – A identificação (1961-1962). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Porto Alegre: L&PM Editores, 2017.