Dizer toda a Verdade — em modo oblíquo —/No Circunlóquio, o êxito:/Brilha demais p’ra nosso enfermo gozo/o seu sublime susto./Como a meninos se explica o relâmpago/De modo a sossegá-los —/A Verdade há de deslumbrar aos poucos/Os homens — p’ra não cegá-los. — Emily Dickinson

O bolsonarismo se firmou, formatando uma militância aguerrida, ao partir para o ataque contra “inimigos” — e não adversários — reais e imaginários. No velho espírito da Guerra Fria, sua batalha não prima pela argumentação de linhagem racionalista, e sim pela retórica da violência (observe-se que eleitores do PT, em especial no segundo turno, ficaram com receio de adesivar seus carros com a imagem de Lula da Silva). O adversário-inimigo deve ser “eliminado” — é o discurso-regra.

A TV Globo foi escolhida como “inimiga”. Por isso se tornou, na linguagem do bolsonarismo, “Globo lixo”. Nas redes sociais e grupos de WhatsApp, militantes da direita se encarregaram, durante quase quatro anos, de espalhar que a maior rede de televisão do país estava “quebrando” — o que não é fato — e que sua concessão, ao terminar, não seria renovada. Seria o “fim” da emissora da família Marinho, que, goste-se ou não, é a melhor do país, em jornalismo, entretenimento e dramaturgia.

Pintura de Rafal Olbinski

Ao ser transformada em “inimiga”, portanto o “elemento” a ser “destruído”, a Globo arregimentou seus melhores profissionais e estabeleceu um tom crítico — no geral respeitoso, e sem fake news — ao governo de Jair Bolsonaro e à própria figura do presidente.

Cada equívoco de Bolsonaro era (e é) exposto sem contemplação. Jornalistas, livres para criticar, eventualmente podem se tornar “corrosivos”. Enquanto confrontava a Globo, atacando-a direta e indiretamente, o bolsonarismo, sobretudo o governo de Bolsonaro, ia sendo desmontado, de maneira crítica, quase sempre nos limites do bom jornalismo.

O que, durante quatro anos, a Globo disse sobre Bolsonaro não era “invenção”. Pelo contrário, o presidente forneceu os motivos para as críticas. Tosco e agressivo, atacou jornalistas, sobretudo mulheres, como Vera Magalhães e Patrícia Campos Mello, com uma violência verbal inaudita no país. Nem Fernando Collor, quando presidente, era tão abusivo.

Pintura de Paul Edman

Na questão da pandemia do novo coronavírus, Bolsonaro abriu os flancos para a crítica dura da Imprensa, não apenas da Globo. O presidente tratou a Covid-19 — que, letal, contribuiu para a morte de quase 700 mil pessoas (e continua morrendo muita gente) — como uma gripezinha, incentivou as pessoas a tomarem medicamentos ineficazes e, por birra pueril, demorou a comprar vacinas.

É provável que, sem a pressão da Imprensa e se João Doria, quando governador de São Paulo, não tivesse saído a campo para comprar vacina, Bolsonaro teria demorado ainda mais a adquirir o imunizante.

A Imprensa não precisou “inventar” nada a respeito de Bolsonaro, sua família e sua equipe. A produção de problemas da gestão bolsonarista, em alta escala, facilitou o trabalho dos jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão. Basta arrolar a corrupção no Ministério da Educação, a nebulosa história do Ministério do Meio Ambiente, na gestão de Ricardo Salles, o orçamento secreto-tratoraço e o sigilo de 100 anos em questões aparentemente irrelevantes para a nação. Sem contar a história das rachadinhas e os vários imóveis comprados por Bolsonaro e familiares com dinheiro “vivo”. O livro “O Negócio do Jair”, da jornalista Juliana Dal Piva, é um relato preciso e objetivo das artimanhas da famiglia de origem italiana.

Pintura de Igor Morski

Bolsonaro e o bolsonarismo — com seus gabinetes do ódio, fábricas de fake news — deram material de primeira “qualidade” à Imprensa. O governo “aparelhou” estruturas de Estado para fins de beneficiar e proteger o homem e não o presidente Bolsonaro. Sergio Moro saiu do Ministério da Justiça porque tentou impedir que Bolsonaro, o indivíduo-presidente, usasse a Polícia Federal para fins pessoais.

O presidente conseguiu um feito raro: transformou a Procuradoria-Geral da República numa espécie de subsecretaria para assuntos particulares de Bolsonaro, o indivíduo, não o presidente. Tentou fazer o mesmo com os militares, nomeando milhares para cargos altamente remunerados.

De fato, parte significativa dos militares defende Bolsonaro, quiçá por identificação ideológica. Porém, as Forças Armadas não são golpistas e resistiram ao apelo da família Bolsonaro e do bolsonarismo por um golpe de Estado.

Arte de Kathe Kollwitz

Mais do que Bolsonaro, homem inteligente mas inculto, almirantes, brigadeiros e generais são, no geral, bem informados. Eles certamente têm lido atentamente tanto a imprensa brasileira quanto a internacional (“The Economist”, “Le Monde”, “El País”, “The Guardian”, “New York Times”, “Wall Street Journal”, “Financial Times”). O que se registra, em toda a Imprensa, é que o Brasil, sob Bolsonaro, está se tornando um país-pária, o que tende a prejudicar os negócios dos empresários brasileiros, como exportadores de carne, como a JBS, e de grãos (soja, por exemplo).

O Judiciário é o poder que, em nome da lei, impede que um democrata se torne tirano. O Supremo Tribunal Federal, ante certa omissão do Legislativo, outro pilar da democracia, conteve, a duras penas, os arroubos autoritários de Bolsonaro e aliados.

O confronto de Bolsonaro com o STF deixou evidente para a sociedade que era preciso “brecar” o presidente. Por isso, no dia 30 de outubro deste ano, a maioria dos eleitores disse “não” ao candidato do PL, por sinal, muito bem votado — o que prova a eficiência do bolsonarismo, que, de algum modo, “criou” um eleitorado à sua imagem e semelhança.

Pintura de Tarsila do Amaral

Então, se havia um democrata com vocação para tirano, a Imprensa não errou ao se colocar como “oposição”. É possível que a “Globo”, a “Folha de S. Paulo”, “O Globo” e o “Estadão” (um jornal em geral equilibrado, com textos críticos tanto ao bolsonarismo quanto ao petismo) tenham excedido em alguns momentos. Mas, em regra, a cobertura do governo Bolsonaro e da campanha eleitoral foi até ponderada. Porque não é nada fácil manter o equilíbrio em relação a um presidente tão destemperado quanto Bolsonaro.

O equívoco da imprensa, notadamente da TV Globo, sobretudo da GloboNews, talvez tenha sido outro. No afã de desgastar Bolsonaro, a partir de seus próprios equívocos, a maior rede do país deu-lhe um destaque excessivo. Por vezes, eu ligava a tevê e dizia para minha mulher, Candice: “Vamos ver o que a GloboNews está dizendo sobre Bolsonaro”. E, de fato, o canal estava, mais uma vez, “desancando” o presidente. A crítica excessiva, por manter o nome do presidente em evidência, acabou, por vias indiretas, por fortalecer seu nome e sua “coragem” — o presidente que enfrentou a Globo.

Pintura de Wolfgang Lettl

Outro “problema”: a mídia (ou “grande mídia”, como afiança o bolsonarismo) se concentrou em demasia na exposição de pesquisas de intenção de voto, praticamente esquecendo a campanha. A exposição (uma obsessão) dos números, que mostravam Bolsonaro atrás de Lula da Silva, do PT, parecia agradar, sobremaneira, os jornalistas.

Se tivesse procurado entender o eleitorado bolsonarista, além da forte ligação dos evangélicos com o presidente, a Imprensa teria ido além das pesquisas, que são falíveis porque não conseguem apreender os movimentos rápidos, como ondas, do eleitorado.

No geral, os institutos são sérios, mas não são infalíveis. Mostraram Lula da Silva na frente o tempo todo — acertando, portanto. Mas não conseguiram capturar a força do bolsonarismo e a resistência ao petismo e ao próprio Lula da Silva. A “pesquisite” — doença das pesquisas — não permitiu que o bom e velho jornalismo procurasse entender a complexidade dos eleitores patropis, especialmente dos que apoiaram Bolsonaro (e elegeram um Congresso conservador e direitista).

Pintura de Siegried Zademack

O preconceito contra o bolsonarismo travou a percepção atenta do jornalismo. Na eleição deste ano o que mais faltou, e ainda falta, é uma explicação ampla do que são os eleitores de Bolsonaro. Falta explicar, sem excessos ideológicos — para além de uma espécie de ciência política combatente —, como a direita bolsonarista, tosca e imprecisa, conseguiu formatar um eleitorado de quase 60 milhões de pessoas (quase a população da França).

Retomando a questão da TV Globo. Recebi mensagens para comentar a “festa” informal que os jornalistas da Globo fizeram, na redação do “Jornal Nacional”, para comemorar a vitória de Lula da Silva e, sobretudo, a derrota de Bolsonaro.

Leitores me disseram, dando ordens: “Você não vai condenar a ação parcial dos jornalistas da Globo?”

Pintura de Wilfredo Lam

A comemoração sugere que a Globo, por meio de seus criadores — jornalistas, por exemplo —, trabalhou contra Bolsonaro. E, de fato, operou contra o bolsonarismo, em especial porque os gabinetes do ódio, sob orientação dos ideólogos do presidente, “adotaram” a rede de televisão como “inimiga”.

Portanto, quando se derrota um “inimigo”, direta ou indiretamente, não se tem de comemorar? Os jornalistas da Globo comemoraram a vitória de Lula da Silva como se fosse também deles. E, de alguma maneira, é mesmo.

Acossada pelo bolsonarismo, que criticou a “falta de isenção” dos jornalistas, a Globo divulgou uma nota correta, mas com certa dose de hipocrisia (o júbilo, afinal, deve ter sido de todos na rede).

Numa nota, a Globo assinala: “A empresa evidentemente não tem nem pretende ter qualquer controle sobre escolhas eleitorais de cada um desses profissionais nem sobre como manifestam essa preferência em caráter privado”. Certíssimo. Depois, acrescenta: “No entanto, a Globo lamenta que, no ambiente de trabalho, um pequeno grupo tenha, por alguns instantes, esquecido a necessária e habitual prática de autocontenção, em respeito à norma e aos nossos princípios editoriais. É exatamente por meio desses princípios, compartilhados em nossas plataformas, que os brasileiros puderam testemunhar a isenção da cobertura jornalística da Globo ao longo de toda essa campanha”.

“Tocadores de sino”, de Alexander Kosnichev

É pouco provável que os jornalistas tenham comemorado a vitória do petista sem autorização dos chefes. Depois, é falsa a ideia de que a cobertura da Globo (do governo Bolsonaro, da pré-campanha, da campanha) tenha sido isenta. Talvez seja possível falar que não tenha sido inteiramente pró-Lula da Silva, mas foi francamente anti-Bolsonaro. E, sendo assim, acabou por ser pró-Lula da Silva.

Por meio de Lula da Silva, a Globo, assim como seus funcionários, se sentiu também vitoriosa — daí a festa. Como estava “lutando” contra um “inimigo”, que pretendia destruí-la (Bolsonaro prometeu o tempo todo que lhe retiraria a concessão), é lícita, por assim dizer, sua falta de isenção. É belo falar em isenção, mas é um mito que ruiu e que só viceja em editoriais de jornais e na retórica de alguns mestres da ética jornalística.

Pintura de Rob Gonsalves | Foto: Reprodução

A direção da Globo deveria ter dito a verdade: a festa de seus jornalistas representou, não falta de isenção, e sim puro alívio, por saber que a civilização superou, ainda que de maneira provisória, a barbárie. A barbárie nunca desaparece para sempre, está sempre à espreita. E o melhor “remédio” contra ela é mais democracia, e, em 2022, quem estava ao seu lado, como um guerreiro, era Lula da Silva, e não Bolsonaro. Por isso, com ou sem isenção, a Globo esteve e está do lado certo da história — o dos democratas. A festa dos jornalistas está, por isso, aprovada.