Adenauer, chanceler que desmontou o nazismo, governou a Alemanha até os 87 anos

14 julho 2024 às 00h00

COMPARTILHAR
O nazista Adolf Hitler (1889-1945) criou dois grandes inimigos que, de imaginários, se tornaram reais — os judeus e os bolcheviques. O ditador da Alemanha planejou liquidar tanto os judeus europeus quanto os comunistas. Porém, ao ser derrotado pelos Aliados, ao fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o líder germânico contribuiu, de maneira indireta, para entregar parte do país que administrava, a Alemanha, à União Soviética de Ióssif Stálin (1878-1953). A Alemanha Oriental, comunista, é “filha” tanto de Hitler quanto de Stálin.
Mas uma Alemanha, a Ocidental, escapou do nazismo e do comunismo. Sua reordenação democrática se deu, em larga medida, a um homem que, ao se tornar chanceler, em 1949, tinha 73 anos (ao deixar o governo, tinha 87 anos — mais velho do que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden). Trata-se de Konrad Adenauer (1876-1967 — viveu 91 anos).

O líder alemão é analisado no livro “Carisma e Poder — Líderes Que Moldaram a Europa Moderna” (Companhia das Letras, 494 páginas, tradução de Paulo Geiger), do historiador britânico Ian Kershaw, o melhor biógrafo de Hitler (ao lado de Peter Longerich e Brendan Simms). Sei que o pesquisador está arrolando apenas líderes europeus, mas eu incluiria líderes americanos, como Franklin D. Roosevelt, Harry Truman, Dwight D. Eisenhower e John Kennedy, que também ajudaram a moldar a Europa moderna.
“Konrad Adenauer: construindo a Alemanha Ocidental” é um dos melhores capítulos do livro, sobretudo porque fala-se pouco sobre o líder alemão no Brasil.
Antes de Hitler chegar ao poder, em 1933 (e, frise-se, não por um golpe de Estado), Adenauer já era político. Católico, era filiado ao Zentrum, partido de centro. Em 1917, tornou-se prefeito de Colônia. Na década de 1920, chegou a ser cotado para chanceler.

Os nazistas começaram a persegui-lo, porque esteio do catolicismo político em Colônia, era um obstáculo à extrema-direita. Chegaram a espalhar que simpatizava com os judeus, que era judeu, e coletaram dinheiro para assassiná-lo.
Em março de 1933, os nazistas o destituíram da Prefeitura de Colônia. Adenauer escondeu-se num mosteiro da Igreja Católica e recebeu apoio financeiro de amigos para manter a família. Mesmo preso duas vezes, conseguiu sobreviver, possivelmente devido à proteção católica e ao fato de ser moderado.
Em 1945, com a queda de Hitler, Adenauer voltou a ser prefeito de Colônia, sob a proteção dos americanos. Ele se tornou líder do partido União Democrática Cristão (UDC).

Em 1949, com a Alemanha restabelecida como país, Adenauer, de 73 anos, se tornou chanceler, com apoio dos americanos e britânicos. Venceu pela diferença de um voto — o seu. “Tinha um alto nível de autodisciplina e, mesmo em idade avançada, uma capacidade stakhanovista para o trabalho árduo”, informa Kershaw. Ele “transmitia autoridade”.
“Ele acreditava num governo democrático. Mas a democracia, a seu ver, precisava ser manobrada, guiada, dirigida”, anota Kershaw. Era “um formidável operador político”. Sempre próximo dos americanos. O fato de ser anticomunista — portanto, anti-Stálin — facilitou a conexão.
Em 1950, aderiu a ideia de uma Comunidade Europeia do Carvão e do Aço e apoiou a França na proposta de se criar uma Comunidade de Defesa Europeia. Adenauer entendeu que “o futuro da Alemanha estava ligado à integração da Europa Ocidental, econômica e militarmente. (…) Seu propósito era servir aos interesses nacionais alemães”. Para manter a Alemanha forte, e infensa ao poderio de Stálin, aceitou de bom grado a aliança com os Estados Unidos.

Nas suas falas, Adenauer sugeria que seu objetivo era “a reconstrução da Alemanha — física, econômica e moralmente. (…) A integração de uma sociedade destroçada era o imperativo crucial, a base indispensável do processo de reconstrução”.
Em termos econômicos, com a crucial orientação do ministro da Economia, Ludwig Erhard, adotou uma política econômica liberal, sem controle do Estado.
Numa consulta, Adenauer recebeu orientação que não seguiu: “Meu médico me disse que eu seria capaz de exercer” o cargo de chanceler “por pelo menos um ano, talvez dois”. Ficou 14 anos no poder.
1955: Alemanha readquire sua soberania
Em 5 de maio 1955, a República Federal Alemã se tornou um país soberano, sem controles americanos e britânicos. De acordo com Kershaw, isto se deveu “muito à liderança pessoal de Adenauer”. “A rápida obtenção de soberania foi possível porque no início da década de 1950 Adenauer vinculou decididamente a República Federal ao Ocidente.”

Stálin tentou interferir, tentando afastar a Alemanha dos aliados ocidentais, mas Adenauer deu um chega-pra-lá no líder comunista. As pressões do ditador soviético levaram ao Tratado da Alemanha entre a Alemanha capitalista, os Estados Unidos, a Inglaterra e a França, em 1952.
Astuto, lúcido e racional, Adenauer entendeu, de cara, que era preciso ficar próximo das potências ocidentais — até porque Stálin havia ficado com naco graúdo da Alemanha, dita Oriental (ou Democrática, o que não era).
Em 1957, o Tratado de Roma, que criou a Comunidade Econômica Europeia e a Comunidade de Energia Atômica Europeia, contou com Adenauer como signatário. Ao lado do ex-primeiro-ministro belga Paul-Henri Spaak, o líder alemão foi decisivo na integração europeia.
Graças ao espírito conciliatório de Adenauer, um estrategista que sabia manipular e unir os contrários, a região do Sarre, área industrial, voltou à soberania da Alemanha, em 1957. Procedia-se, aos poucos, à recuperação econômica do país.

A reconciliação entre a França e Alemanha, consolidada pelo Tratado de Élysée, se deu graças aos esforços de Adenauer e de Charles de Gaulle. Era outra vitória do alemão.
A democracia, o nazismo e o líder
A refundação da Alemanha como nação democrática esbarrou, em parte, na força dos nazistas. “Um em cada dois alemães achava que o nacional-socialismo tinha sido uma boa ideia, só que malconduzida (e o preferia ao comunismo).” Em 1952, “um quarto da população ainda tinha uma ‘boa opinião’ sobre Hitler”. Era considerado mais importante do que Adenauer.
Porém, a partir de 1955, deu-se uma mudança. “Adenauer era então considerado o segundo [mais popular], perdendo apenas para Bismarck, na estimativa do público quanto a quem era o líder que mais fizera pela Alemanha.”
Em 1963, quando deixou de ser chanceler, “tinha superado até mesmo Bismarck”. “Quando Adenauer renunciou ao cargo de chanceler durante seu quarto mandato sucesso, a democracia parlamentar multipartidária estava bem estabelecida. (…) A Constituição se baseava em princípios de liberdade pessoal e na prevalência da lei.”

Kershaw enfatiza que “o ‘milagre econômico’ da década de 1950 sustentou a consolidação da democracia. (…) Adenauer certamente desempenhou um grande papel na formatação da estrutura política para a incrível explosão do crescimento econômico. Mas o arquiteto do ‘milagre econômico’ não foi Adenauer, e sim Ludwig Erhard, que, com sucesso, usou o Estado para estabelecer a estrutura de uma florescente economia de mercado liberal, ligada a princípios de bem-estar social”.
Um dos segredos do sucesso de Adenauer, além de sua habilidade política e sua capacidade de agregar, tem a ver com a montagem de uma equipe eficiente e dotada de espírito público. Kershaw lista Ludwig Erhard, da Economia, Heinrich von Brentano, do Exterior, Gerhard Schröder, do interior (depois, do Exterior), Theodor Blank, da Defesa (mais tarde, do Trabalho) e Franz Josef Strauss (Defesa). Adenauer sabia liderá-los.
O historiador sublinha que “o anticomunismo foi o cimento ideológico da sociedade da Alemanha Ocidental. Unia todos, menos a estrema esquerda.
A construção do muro de Berlim, em 1961, reduziu a popularidade de Adenauer, porque o chanceler alemão decidiu não confrontar a União Soviética. Mas, enfatiza Kershaw, o mais importante, a política de integração da Alemanha ao Ocidente, foi uma vitória de Adenauer. “Seu conservadorismo fortemente antissoviético e pró-ocidental foi capaz de atrair muitos daqueles que poderiam, sem isso, ser desviados para um revivido nacionalismo de extrema-direita.”
Há um aspecto negativo no “realismo” absoluto de Adenauer. Ele não se preocupou com a desnazificação da Alemanha. Não era possível uma retomada do nazismo, mas vários nazistas acomodaram-se à máquina pública, sob a proteção do chanceler. “Adenauer teve a maioria do público a seu lado quando introduziu anistias para todos, a não ser o pequeno número dos condenados pelos piores crimes na era nazista. A pressão por uma anistia geral veio parte de ex-nazistas, alguns dos quais tinham um passado muito obscuro e que tinham se infiltrado entre os parceiros da coalizão de Adenauer, o PDL”, diz Kershaw.
Segundo Kershaw, “muitos do que tinham servido no regime de Hitler — às vezes em posições importantes — tinham se reintegrado ao serviço civil e ao sistema legal. Uma lei aprovada em 1951 garantia a realocação nas posições anteriores”.
Mesmo tendo “ajudado a formular a legislação antijudaica” e tendo sido “coautor do comentário à Lei de Cidadania do Reich (parte das notórias Leis de Nuremberg de 1935)”, Hans Globke serviu a Adenauer como secretário de Estado, de 1953 a 1963.
Nazista “ferrenho”, Theodor Oberländer participou do governo de Adenauer como ministro federal para Pessoas Deslocadas, Refugiados e Vítimas da Guerra. “Sem grandes protestos populares.”
Em 1962, a polícia entrou no escritório da “Der Spiegel”, em Hamburgo, e prendeu o editor. A revista havia criticado Franz Josef Strauss, “apontando deficiências na capacidade de defesa do país”. A sociedade alemã criticou severamente o governo de Adenauer e Strauss acabou tendo de renunciar. A popularidade de Adenauer caiu.
O legado do líder alemão
Kershaw considera que, com todos os problemas, o legado de Adenauer é positivo. Reimplantou a democracia no país (o pluralismo e o Estado de Direito) e recuperou a economia em pouco tempo.
“Em 2003, 3 milhões de alemães votaram” em Adenauer “como tendo sido o maior alemão de todos os tempos, por ter tirado a Alemanha das cinzas e ter lhe dado um lugar no palco mundial”, conta Kershaw.
O pesquisador afirma que “o papel que” Adenauer “desempenhou pessoalmente no comprometimento da República Federal com a aliança ocidental no início da década de 1950 foi indiscutivelmente a parte mais importante de seu legado. (…) Adenauer foi fundamental ao assegurar que a República Federal se voltasse para o Ocidente, particularmente os Estados Unidos, para sua segurança futura. (…) Sem Adenauer, a história da Alemanha e da Europa poderia ter sido muito diferente”.
Kershaw sugere que “Adenauer também foi importante para o reconhecimento de que o futuro da República Federal tinha de ser parte de uma Europa Ocidental mais integrada, com base em interesses mútuos, amizade e estreita cooperação”.
Adenauer manteve relação positiva com Israel e “concordou, em dezembro de 1951, com substanciais reparações financeiras pelos crimes nazistas contra os judeus. (…) Mas a reabilitação e a reintegração de ex-nazistas na nova democracia foram a parte mais questionável de seu legado”.
Em maio de 1953, Winston Churchill considerou Adenauer como “o mais sábio estadista alemão desde a época de Bismarck”.
“Admirei imensamente a perseverança, a coragem, a compostura e o talento com que ele tratou as complexas, mutantes, incertas e imprevisíveis situações com as quais foi confrontado incessantemente”, disse Churchill.
“Sem ele [Adenauer], a história da Alemanha — e, mais amplamente, da Europa — teria seguido um curso diferente”, postula Kershaw.