Há algum tempo, um resenhista da “Veja” escreveu, no texto “Abraham Lincoln, escritor”, que o historiador Fred Kaplan havia lançado “The Biography of a Writer” e cita Jacques Barzun, Edmund Wilson e Gore Vidal como alguns dos críticos que perceberam a veia de prosador do presidente.

Se forneceu os nomes dos críticos, a “Veja”, talvez por falta de espaço, não revela os títulos de suas obras. Gore Vidal é autor de um belo romance histórico, “Lincoln” (Editora Rocco), mas menosprezado na academia, porque não apresenta suas fontes, pelo menos não detalhadamente, com notas de rodapés, o que, claro, tornaria qualquer romance, ainda que histórico, tedioso.

No livro “De Fato e de Ficção — Ensaios Contra a Corrente” (Companhia das Letras, 324 páginas), Gore Vidal escreve um artigo de sete páginas, “Uma nota sobre Abraham Lincoln”. William Herndon, sócio de Lincoln num escritório de advocacia, escreveu: “Ele era o pensador mais contínuo e severo da América. Lia pouco, mas com um objetivo. A política era o seu Paraíso e a metafísica, o seu Inferno”.

William Shakespeare: o ídolo literário de Lincoln | Foto: Reprodução

John Hay, secretário do presidente que aboliu a escravidão e uniu Sul e Norte à força, disse: “Nenhum grande homem é modesto. O que homens como Chase e Summer nunca puderam perdoar nele foi sua arrogância intelectual e sua presunção inconsciente de superioridade”.

Para Gore Vidal, “o Lincoln da realidade era frio e ponderado, meditativo e brilhante. (…) As biografias o entediavam; não lia romances. Mesmo assim, (….) tornou-se um mestre de nossa difícil língua, e a estranha música de suas frases não se parece com a de ninguém mais — com a possível exceção de Walt Whitman num dia bom e não choroso”.

Edmund Wilson: Lincoln “inventou”, de alguma forma, Mark Twain e Hemingway | Foto: Reprodução

Dois dos melhores artigos sobre Lincoln são de Edmund Wilson e podem ser encontrados no excelente “11 Ensaios — Literatura, Política, História” (Companhia das Letras, 333 páginas, tradução de José Paulo Paes, seleção e prefácio de Paulo Francis): “Abraham Lincoln” e “O aprimoramento da prosa americano”.

Os dois textos esclarecem, ao contrário do que sugere a “Veja”, que, no século 19 (o presidente foi assassinado em 1865), havia a percepção de Lincoln como escritor. Era leitor apaixonado de Shakespeare, de Milton e da Bíblia. Leu Voltaire, Tom Payne, Darwin, Spencer e Feuerbach.

Gore Vidal percebeu Abraham Lincoln como um autor refinado | Foto: Reprodução

Estilo habilidoso nas cadências

Presidente, Lincoln escrevia seus próprios textos. Num deles, disse: “Uma casa dividida contra si própria não pode permanecer de pé”. Perfeccionista, demorava até um mês para escrever um discurso de poucas linhas. “Seu estilo era habilidoso nas cadências, preciso na escolha de palavras, e no entanto também instintivo e natural; era inseparável de sua personalidade em todas as manifestações”, pontua Wilson.

Lincoln escreveu poemas, embora funcionasse mais como pregador-prosador, autor de sermões, no dizer de Edmund Wilson. Num dos poemas fala de um vizinho que enlouquecera: “Longe, como em sonho, eu sempre lhe ouvia/A voz meiga e solitária;/Um canto fúnebre ela me parecia/Da razão que o desertara.//Para beber-lhe os sons, caladamente/Eu saía de casa, antes/Que tocasse, o deus do dia nascente,/A colina do levante.//O ar continha o alento: uma ronda de anjos/eram as árvores mudas,/Com lágrimas dolentes orvalhando/A terra também à escuta.”

Em “O aprimoramento da prosa americana”, Edmund Wilson disse que, até a Guerra Civil Americana (1861-1865), a prosa dos EUA era empolada, retórica, frouxa. “Depois da Guerra Civil, o Norte se libertara da influência de [Walter] Scott, ao passo que o Sul continuara a acalentar uma linguagem grandiosa e imprecisa, de par com a lenda que revestia.”

Wilson conta que Thomas Higginson e William Lowell perceberam, antes dele, de Barzun e de Gore Vidal, que, como prosador, Lincoln inovara ao criar um “estilo mais terso e menos pretensioso”. O diminuto discurso de Gettysburg é visto como uma obra-prima política mas também literária.

Abraham Lincoln: Shakespeare era sua Bíblia | Foto: Reprodução

“O presidente Lincoln”, anota Edmund Wilson, “foi grande também por haver sido mestre — testemunha-o seu discurso em Gettysburg — num inglês verdadeiramente masculino, clássico porque não era de nenhum período particular, que estava à altura tanto do mais alto quanto do mais humilde dos seus compatriotas. (…) Sua leitura favorita era Shakespeare e Milton, a que se deve evidentemente acrescentar a Bíblia”.

Numa interpretação ousada, Edmund Wilson diz que a prosa concisa americana, que, depois de passar por Mark Twain (chamado de “o Lincoln de nossa literatura”), desaguou em Hemingway (e por que não dizer em Philip Roth e Joyce Carol Oates?), nasceu com os textos de Lincoln.

Além de abolir a escravidão e unir Norte e Sul, possibilitando a rápida expansão do capitalismo americano, Lincoln é reconhecido como um dos pais da moderna literatura dos Estados Unidos.

A montagem do time de rivais-aliados

Sobre o Lincoln político, que operava com habilidade as divergências entre aliados e ex-adversários (a montagem de seu secretariado-ministério mostra que o líder americano era um mestre, um filho tanto de Maquiavel quanto de Shakespeare), há o clássico “Team of Rivals — The Political Genius of Abraham Lincoln”, de Doris Kearns. Em português há uma biografia resumida, “Lincoln” (Record, 322 páginas, tradução de Waldea Barcellos), da mesma autora.

Trecho de “Lincoln”, de Richard J. Carwardine

“Muito do seu [de Abraham Lincoln] por Shakespeare advinha das perspectivas extraordinárias do dramaturgo a respeito da psicologia humana e das suas meditações sobre o poder político e sua efemeridade, responsabilidades e desgostos. ‘Leu Shakespeare mais do que todos os outros escritores juntos’, lembrava [John] Hay, que ouvia durante horas, noite após noite, Lincoln a ler-lhe as suas peças favoritas: ‘Hamlet’, ‘Rei Lear’, os dramas históricos e, especialmente, ‘Macbeth’.

“O seu gosto pelos discursos de monarcas legítimos imperfeitos como Lear e Ricardo II, e dos regentes usurpadores Ricardo III, Macbeth e Claudius, não pode ser plausivelmente explicado por algum impulso tirânico sublimado nele próprio. Melhor dizendo, a experiência destes chefes de Estado shakespearianos, cuja ambição lhes fez ganhar ‘a falsa coroa’, falava à condição de um homem cujo desejo incansável de alcançar o posto mais alto da União lhe conferira um dever medonho e extremamente desgastante.

“O seu particular fascínio com o solilóquio de Claudius, que começa ‘Ohm a minha ofensa é o cargo’, em que o criminoso rei luta honesta e desesperadamente com a sua consciência, e que Lincoln considerava ‘um dos melhores toques da natureza no mundo’, pode muito bem ter tudo que ver com o seu próprio (por vezes, devastante) sentido de responsabilidade, se não culpa, pelo início de uma guerra perigosa.

“Shakespeare — particularmente através da sua grande criação cômica, Falstaff — trouxe também a Lincoln a alegria do riso, mas era acima de tudo por uma ‘companhia na melancolia’ que o sobrecarregado presidente se virava para o seu dramaturgo favorito.” (Página 453)

Do livro “Lincoln” (Publicações Europa-América, 492 páginas, tradução de Armanda Seabra Martins), de Richard J. Carwardine, professor de Oxford.