A infeliz coluna de Merval Pereira publicada em O Globo na quinta-feira, 17, é um dos sinais mais claros de que, se o governo de Luiz Inácio Lula da Silva promete dar um “cavalo de pau” nas políticas públicas de Jair Bolsonaro (ou na ausência delas), o mesmo deve ocorrer em relação a uma parte dos jornalistas que apoiou, até por falta de opção, a candidatura do petista no segundo turno das eleições.

No texto, o jornalista, que também integra os quadros da GloboNews, ressalta a importância de Lula devolver o Brasil ao mapa geopolítico mundial e de, por isso, o País voltar a protagonizar a agenda. Por outro lado, critica a postura do presidente eleito de se colocar como um negociador das grandes questões mundiais, como se fosse uma posição “além” da capacidade dele. Algo questionável, mas que não vai ao âmago da preocupação do colunista: ele quer porque quer que Lula defina logo seu ministro da Fazenda e se comprometa com o equilíbrio fiscal.

Concorde-se ou discorde-se, o imortal Merval – presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), diga-se – é uma referência no jornalismo mainstream e, pode-se dizer, até porta-voz de interesses do grupo que integra. Para a imprensa hegemônica, ainda que o PT não tenha o modelo político dos mais queridos, o autoritarismo com que sempre foi tratada pelo atual presidente poderia, com risco real, debandar para a radicalização total, inclusive levando a fechamento de veículos. Ainda que a política econômica de Paulo Guedes lhe seja, por incrível que pareça, mais palatável, não seria bom negócio “pagar para ver” um segundo mandato de Bolsonaro.

À parte os revoltosos das portas dos quartéis, indignados com a derrota e querendo golpe militar para que Lula não assuma a Presidência, o sentimento geral é de que o petista já tomou o comando do País e já pauta o futuro. Foi isso que ele fez em seus discursos e suas declarações no exterior, seja no Egito, participando da COP27, seja em Portugal, ao lado das autoridades do país coirmão. O objetivo dessa parte da mídia, no momento, é pautar a pauta.

A tutela da política econômica, com vários editorialistas, colunistas e articulistas da área ganhando espaço nas páginas eletrônicas e de papel desses veículos, é o cerne. Empresas de comunicação são, na verdade, pedaços de grandes grupos, holdings que têm interesse em desde leis sobre tributos até a definição de políticas para o agronegócio.

E, por fim, como pano de fundo quase não notado, embora onipresente, está a imensa e eterna chaga da negligência ao período da escravidão, pecado original da República: a consequência é que ainda somos uma sociedade em que os de cima acham que os de baixo não merecem reparação. E foi assim que agravamos e perpetuamos uma forma particular de desigualdade social absurda.

À transição do reacionarismo de Bolsonaro para a retomada de posturas do século 21 com Lula – e que, acredita-se, se dariam com qualquer outro presidente eleito, em maior ou menor grau – corresponde também a transição da mídia: de críticas revoltadas, embora resignadas, com Bolsonaro para uma força-tarefa que pressiona por um pacote liberal retrô, com contenção de gastos acima de tudo, em uma pressão que, como dizem até banqueiros, já se encontra na contramão do mundo capitalista.