A psicanálise (e a função social do analista) em tempos de pandemia

12 junho 2020 às 08h18

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Estar omisso é reservar para si a letra da irresponsabilidade com um mundo que nos acolheu enquanto espécie e com a sociedade que nos absorveu como sujeitos
Diego A. Moraes Carvalho
Especial para o Jornal Opção
A pergunta pelo que será [d]o um mundo pós-pandemia cada dia mais ganha reforço de urgência. Já não se espera mais voltar ao que era, até porque nem sempre ali havia um bom lugar e questionar sobre o amanhã parece ser o que nos resta quando o presente é incerto, e, aparentemente, de difícil [di]gestão. E é justamente neste contexto que campos da cultura são chamados a darem seus testemunhos e exercerem seus predicados de protofuturologia abarcados por dados e uma certa metodologia. Nós nos fiamos nisso. Afinal, foracluídos e apartados desses referenciais, o que nos resta é um “cloroquinopensar” que tem como efeito imediato a produção de um delírio que conforta [entorpece?] na medida em que elege a realidade como inimiga.

A psicanálise, por sua dupla acepção — como espaço da clínica que ausculta o sofrimento psíquico e como um tipo de ciência da linguagem que investiga os processos inconscientes que se desenrolam na teia social — é convidada a se posicionar nesse grande zeitgeist, espírito de nossa época: o mundo pandêmico.
Considerando essa condição de ser da psicanálise (e daquele que se autoriza como psicanalista), uma questão sensível e central se desvela: qual seria o seu papel como instância do saber ou agente capaz de atuar em tempos de pandemia? Outras indagações de análogo teor emergem: o que poderia a clínica — face ao seu suposto dispositivo psicoterápico — ofertar para aplacar o sofrimento psíquico das pessoas isoladas e desesperançadas pelo assolamento viral? Dada a dimensão da psicanálise enquanto dispositivo crítico, seria ela capaz de, além de meramente ofertar um diagnóstico psicopatológico do social, também emergir como uma indicação de reordenamento da sociedade e de seus afetos?
A resposta para todas as questões é um sonoro “sim” — que não dispensa aspas.
Por obviedade, o momento é sensível e inigualável em nossa história. Já tivemos outras epidemias e outras necropolíticas no mundo — para usar o termo do historiador e filósofo africano Acchile Mbembe. Mas, pela primeira vez, as informações e os patógenos correm em velocidade comum, atravessando continentes e enterrando nossos entes e esperanças com uma força assombrosamente globalizante (ou seria neoliberalizante?). Posicionar-se frente a isso não é somente uma convocação clínica e epistemológica do ponto de vista acadêmico e/ou profissional, é um dever humano. Parafraseando a filósofa judia-alemã Hannah Arendt (1906-1975), vivemos em tempos sombrios quando as piores pessoas perdem o medo e as melhoras se destituem da esperança. Não é tão-somente a ousadia do carrasco, mas a banalidade do burguês conformado que o torna tão criminoso quanto o primeiro. Ou, em termos dantescos, o inferno reserva as caldeiras mais quentes àqueles que em tempos de crise escolheram a neutralidade. Estar omisso — clínica, acadêmica, política, econômica, espiritualmente —, num momento como este, é reservar para si a letra da irresponsabilidade com um mundo que nos acolheu enquanto espécie e com a sociedade que nos absorveu como sujeitos.

Neste contexto, cabe ao psicanalista usar a teoria psicanalítica para exercer, em termos arendtianos, uma “mentalidade alargada” sobre o tempo presente, pois, da metapsicologia freudiana e seus textos ditos sociais até os debates mais contemporâneos acerca da subjetificação (subnotificação?) dos corpos e do (curto-)circuito dos afetos, o analista é convocado a mobilizar seus referenciais em prol dessa inscrição no mundo comum. Talvez, mais do que certos campos do saber e da clínica, a psicanálise tem [cons]ciência de sua potência interpretativa e transformadora. Sua historicidade testemunha seu condão. A teoria e a clínica psicanalítica atravessaram o século 20 em oposição ao caráter de panaceia do discurso de medicamentalização do sofrimento pela via da psiquiatria convencional. Nesse sentido, foi capaz de rever seus postulados, o papel dos processos inconscientes, da sexualidade, da psicopatologia, da mulher e da própria compreensão do que entendemos por ciência e linguagem.
De igual sorte, os eventos políticos não passaram incólumes, inscrevendo os psicanalistas de toda ordem a se posicionarem frente ao seu tempo. Da primeira Grande Guerra (1914-1918) ao maio de 68 francês, dos porões do Dops ao desvendar das Comissões de Verdade no Brasil, a comunidade psicanalítica sempre foi convocada a fazer do espaços que lhe constituem — do divã à tribuna da opinião pública — as trincheiras de uma guerra que não cessa toda vez que as contingências do superego são colonizadas por discursos e atravessamentos autoritários que solapam a liberdade e o desejo. Embora — com justeza e crítica histórica — nossos psicanalistas tupiniquins não tenham exercido majoritariamente um posicionamento de embate, nos anos de chumbo, contra o regime militar autoritário nacional, não obstante, as armas dessa beligerância (ora) simbólica já estão forjadas na dupla potencialidade que a psicanálise encarna em si: a acolhida na escuta qualificada e/ou o dever para com a urgência da inscrição da palavra na cena social.

A trama da singularidade e o recobrar de seu significado
O corte lógico nunca foi apenas um dispositivo técnico de intervenção do analista, mas também uma metáfora de ação política quando há a necessidade de se fazer ouvir o grito do inconsciente na esfera pública. Ser psicanalista nunca foi tão-somente se sentar ao lado de um divã, passivo, frente às queixas subjetivas e lamuriosas dos analisandos à espera de um insight resolutivo. Se a dor é (consequência de um) sintoma, é preciso “ouvi-lo” antes de ter a pretensão de removê-lo [cura?] a fim de que ele revele a que — e de onde — veio. Daí emerge o papel do analista que faz as vias de um demiurgo entre a esfera subjetiva e o socius que produziu e transmutou aquele indivíduo em sujeito. (De)cifrar aquele que ali desnuda sua alma no divã é tecer junto com ele a trama de sua singularidade, recobrando o seu significado e pertencimento no mundo. E isso não é pouca coisa.
Certa feita, o psicanalista francês Jacques Lacan asseverou que, caso os seus pares não se sintonizassem com seu tempo, deveriam procurar outras atividades que os contemplassem. Um convite de permanência para a alcançar — na clínica e na reflexão — o horizonte de subjetividade de sua época; um imperativo de exigência que faz o analista se responsabilizar por suas ações, especialmente, por suas palavras em sua potência no registro da ordem simbólica.
Nesse momento tão conturbado, o psicanalista é instado a abrir as portas de seu consultório a toda sorte de sofrimentos que lhe batem à porta, sejam essas dores aquelas nas quais as pessoas projetam sua própria limitação, categorizando-as como banais, sejam aquelas que gritam de tal modo que seus corpos trazem as marcas de seu próprio martírio. Ainda, sejam as portas desse consultório a sala elegante em um bairro nobre com todos os clichês de como (disseram que) deve ser um setting psicanalítico, seja o banquinho de praia instalado numa praça pública aguardando um transeunte que se mobiliza e encontra ali um refrigério para alma por meio da partilha da palavra.

Projetos como os do coletivo “Psicanálise na Praça Roosevelt”, em São Paulo, ou em Brasília, desde os anos 90, com a iniciativa conhecida como “Consultório de Rua” até o recente “Psicanálise de Rua”, se apresentam como formas de democratizar o acesso à clínica psicanalítica. Não se trata de caridade, mas, antes, de se articular uma proposta de intervenção enquanto resposta ao momento de vulnerabilidade psíquica e social que o país vem atravessando. Amplia-se o espaço de escuta qualificada para além do reduto burocratizado e, em certa medida, elitista dos consultórios tradicionais. Em tempos de isolamento social, o meio virtual abarca propostas também inovadoras e inclusivas, guardadas as proporções de alcance e acessibilidade tecnológicas. Em Goiânia, um projeto está apostando no atendimento a distância enquanto um interessante dispositivo dentro das práticas ligadas à reorganização do espaço urbano. Inspirada por uma iniciativa carioca chamada “Urbanismo contra o Corona”, a proposta visa permitir o acesso de pessoas que dificilmente chegariam à clínica pelas vias convencionais. Ainda em fase de estruturação, a proposta se desenvolverá em caráter interdisciplinar, contando com vários outros serviços e frentes de colaboração e estudo.
É fato que, acima qualquer prática respeitável de psicoterapia, a psicanálise, mais do que nunca, se apresenta — por força de método e historicidade — como uma instância privilegiada de acolhida e intervenção naquilo que as pessoas mais se queixam e demandam nesses tempos: serem ouvidas e auxiliadas a simbolizarem, a darem nome ao que as angustiam para, quem sabe, a partir daí, reconstruírem esse presente vislumbrando um novo amanhã, já que os “antigos porvires” não estarão mais no horizonte de expectativas do mundo pós-pandemia. A clínica psicanalítica cresce em potência e privilégio à medida que seus agentes assumem responsabilidades filosóficas, políticas e clínicas. E o caminho é árduo. Não há cloroquina para o Real, mas há divã para quem respeita a sua humanidade.
Diego A. Moraes Carvalho é professor-pós-doc no IFG/UFG e membro do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise do Centro Oeste (Latesfip-Cerrado). Coordena o Grupo de Estudos Avançados em Teoria e Clínica Psicanalítica – GO (GEA-TCP).