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É preciso convocar o sujeito a nos contar de novo a sua versão dos fatos e, assim, se situar, numa linhagem, num contexto cultural e histórico, como sujeito do desejo

Marcos Antônio Ribeiro Moraes

Especial para o Jornal Opção

A gente quer ter voz ativa/ No nosso destino mandar/ Mas eis que chega a roda-viva/ E carrega o destino pra lá/ Roda mundo, roda-gigante/ Rodamoinho, roda pião/ O tempo rodou num instante/ Nas voltas do meu coração.  — Chico Buarque

Nos últimos dias me peguei cantando repetidamente essa canção do Chico Buarque, como um mantra, certamente na tentativa de inscrever algo, que me fizesse sentido e me ajudasse a lidar com o catastrófico contexto que estamos vivendo. Mas também, lado a lado com o referido mantra, convive em mim uma pergunta que não quer calar: por que temos de enfrentar tanto horror ao mesmo tempo? Uma tão grave crise sanitária, com tantas mortes, impactos na economia e justamente no momento em que no Brasil já nos encontrávamos à deriva, por conta da grave crise política.

A persistência da memória, de Salvador Dalí

Antes mesmo que irrompesse a atual pandemia viral, já estávamos arranjados e inscritos num modo de subjetividade e laço social que sinalizava importantes questões acerca do mal-estar e sofrimento psíquico do sujeito na atualidade. Questões essas articuladas em torno do vazio e da falta constitutiva, que inevitavelmente faz comparecer o sujeito desejante. Mas que também podem ser traduzidas em diferentes formas de sofrimentos, desamparo, alteração do humor, pânico, paranoia, ansiedade, compulsões, tédio e depressão, entre outros.

Em nossa escuta clínica, não é raro chegarmos à constatação da existência de uma relação entre essas diferentes modalidades de sofrimento e a posição do sujeito em relação ao Outro. De algum modo um sofrimento é sempre um dizer, um apelo ou um protesto lançado ao Outro um enigma a ser traduzido no campo da linguagem, que é nosso instrumento na clínica psicanalítica. Portanto, esses padecimentos já tinham algo a ver com os mal entendidos e não ditos no campo das relações humanas, relações afetivas, crises conjugais, financeiras, no ambiente do trabalho. Posturas marcadas por diferentes posições ideológicas ou políticas, intolerância com o diferente, com as comunidades tradicionais, especialmente com aquelas de matrizes e tradições africanas e indígenas. Comportamentos que, de diferentes formas, indicavam o predomínio da negação da realidade, por via de discursos, nacionalistas, negacionistas e fundamentalistas.

Podemos dizer que é com toda essa condição psíquica que o sujeito entrou involuntariamente para a nova ordem estabelecida por esta pandemia do novo coronavírus. Assim o mundo virou, “rodou num instante”, e com ele o ritmo de nossas vidas, carregando e mandando em nosso destino. De imediato tivemos de nos adaptar e reinventar nossos espaços, formas de trabalhar, amar e conviver. O girar dessa roda viva, todavia, continua a articular  as mesmas forças de sofrimento e infelicidades, porém de forma muito mais avolumada, tornando possível, mais uma vez, constatar que as causas dos nossos sofrimentos têm fontes precisas, como bem nos ensina Freud: “Nosso próprio corpo, condenado à decadência; o mundo externo, com suas  forças de destruição esmagadoras e impiedosas e nossos relacionamentos com os outros” (FREUD, 1980, p. 95).

Pintura de Igor Morski

Enquanto campo teórico e de prática clínica, a psicanálise tem sua origem e desenvolvimento num constante esforço de pesquisa e indagação acerca dessas formas de infelicidade humana, correlacionadas às questões e desafios ligados ao ato de educar, governar e psicanalizar. É a partir de todo esse percurso que Freud (2019, p.355), nos leva a crer que uma solução total ou definitiva para o nosso mal-estar é uma tarefa impossível. Nesse sentido ele afirma que educar, governar e psicanalisar ou curar é da ordem do impossível. Lacan (1992, p. 164), por sua vez, em seu seminário “O Avesso da Psicanálise”, retoma essa afirmação freudiana e acrescenta que fazer desejar, seria também uma tarefa impossível, pois, “é impossível demostrar-se como verdadeiro o registro de uma articulação simbólica que o real se situa, se o real se define como impossível”. Porém, os sujeitos, convencidos por diferentes agentes e discursos, acerca de supostas verdades, bem como por propostas de solução para seus sofrimentos, se reúnem em diferentes modalidades de laços sociais

Me ocorreu pensar sobre o momento que estamos vivendo, tentando entender em que sentido tudo isso estaria impactando os diferentes discursos que sustentam essas diversas modalidades de laços sociais, até então vigentes. Pois a cada rodada do moinho da história, que pode ser provocada também por uma causa biológica, uma pandemia viral com a que nos assola, provoca também giros, quedas e reposicionamentos no campo discursivo e por consequência nas configurações sociais.

Lacan (1992) realiza o referido seminário, “O Avesso da Psicanálise”, num contexto de muitos giros e turbulência no cenário internacional e especialmente no campo universitário francês, movimento que ficou conhecido como maio de 1968, momento de fortes questões lançadas, sobretudo por movimentos estudantis, às instituições, aos educadores, aos governantes, aos que detinham os meios de produção e ao saber vigente. É nessa etapa de seu ensino que ele apresenta a teoria dos quatro discursos, que se encontra intrinsecamente ligada a esse entendimento da existência dessas profissões impossíveis. Por isso cada um dos quatro discursos, de tal forma se refere respectivamente, a quatro posições de manejo da verdade, no ato de governar, educar, psicanalisar e fazer desejar.

Cada um desses discursos se refere a uma cena ou ato, onde o sujeito, o saber, a verdade e a produção se encontram posicionados, com distintas atribuições referidas à verdade. O discurso histérico, caracterizado por uma dúvida sempre lançada contra a certeza de um o saber acerca da verdade, como algo impossível definitivo, que pode lançar o sujeito à condição de desistência, alienação, submissão ou desejo constante de saber. O discurso do universitário, como uma pretensão de afirmação da verdade, no sentido de que acerca dela, tudo já foi dito e conhecido, restando ao sujeito receber e se conformar com um saber burocraticamente enquadrado e definido. O discurso do mestre, como apropriação da verdade e do saber como poder e mando, sobre o desejo de todo sujeito. Como autoridade que dita as regras universais para produção de tais soluções, por isso esse discurso deixa espaço para se falar num discurso do capitalista. Por fim, o discurso do analista, onde seu agente  faz semblante de objeto a, causa do desejo e assim convocar a verdade sobre o mal estar do sujeito, sugerindo que essa,  compareça do lado desse sujeito que demanda, para que ele produza um saber singular sobre a verdade que lhe concerne. Trata-se portanto de quatro formas possíveis de posição no ato de educar, governar, psicanalisar e desejar.

As questões que tanto nos angustiam nesse momento, giram em torno desses  lugares de exercício do poder sobre a verdade, estamos assustados, pelo menos boa parte de nós, com a forma como estamos sendo politicamente governados, com os rumos dados à educação, à saúde, às possibilidades que teremos, a partir dessa pandemia,  enquanto seres desejantes. Aqui  nesse ponto, eu me interrogo se não seriam também quatro formas de  afirmações, que estariam em curso, acerca do que se passa com o mundo nesse atual contexto e como solucionar a crise que vivemos?

Acho que seria desnecessário aplicar cada um desses discursos respectivamente aos grupos e laços sociais atuais, essa tarefa fica como uma provocação para cada um. Ou seja, entender  onde se situa no campo desses discursos,  quem falam em nome das ciências, os políticos, os que ordenam a abertura do comércio, os  que desejam trabalhar, consumir bens, os  que querem a todo custo voltar a  circular e se divertir, os que se recolheram na angustia ou em diferentes formas de inibição, os que oferecem espaços de cura e cuidados.

Todos esperamos a normalização dessa situação, que muitos já estão nomeando como o advento de um “novo normal”, algo como um giro desejado, mas que bem sabemos que não está assim tão fácil de ser garantido. Contudo vale postarmos e buscarmos provocar que esse giro seja para melhor, no que se refere à configuração das relações familiares, na consideração e respeito às diferenças, superação das afirmações racistas e autoritárias. Com novas formas de relações estabelecidas no mundo do trabalho, do mercado. Relações que venham abalar o estabelecido discurso do mestre moderno, especialmente na forma do discurso do capitalista.

É nessa hora que também nós estamos presentes com o discurso do analista, atentos ao que poderá surgir, as novas formas de fazer laço social.  Advertidos de que o saber estará sempre em construção, sempre referido ao inconsciente, que é constituído por excelência na forma de discurso. Se dispor, nessa hora a escutar o sujeito que sofre no contexto dessa crise, com dimensões catastróficas, escutar o que ela produz como retorno do traumático, é uma importante tarefa. Testemunhar o luto das mais diversas formas de perdas, tais como de empregos, projetos, relações e sobretudo dos entes queridos e do seus corpos, que não tiveram lugar e tempo para serem celebrados, chorados e simbolizados como falta a ser  inscrita psiquicamente.

Dias atrás, fui chamado, na unidade de urgência onde trabalho (UPA) para dar suporte a uma mulher, jovem, nordestina, pequena empresária. Seu marido acabara de morrer, vítima de Covid 19, ao chegar à unidade de reanimação, sem que nada pudesse ter sido feito por nossa equipe. Uma intervenção difícil, ela, entre gritos, me contou que foi tudo muito rápido, estava no trabalho e foi chamada pelo filho, para socorrer o marido que havia piorado muito. Não concebia a ideia de voltar para casa sem o seu companheiro.

Uma história ocorrida numa UPA
Pintura de Munch

O que fazer como psicanalista, nessa hora? Ofereci minha presença, como testemunha de sua verdadeira dor. Aos poucos fui pedindo que me contasse como tudo aconteceu, como estavam vivendo, de que lugar do Nordeste eles eram e se tinham parentes por aqui. Aos poucos foi me contando, lembrando coisas importantes da vida e se acalmando, recobrando forças para falar com os amigos, os parentes de lá e recobrar forças para fazer os encaminhamentos que se faziam necessários, com certeza o trabalho de luto começou ali, mas com muita coisa ainda por ser feita.

Mas, de todo modo, é um trabalho de costura do que se encontra esgarçado em cada sujeito e também no tecido social, para que se restabeleçam elos entre o sujeito, sua história e cultura. É nesse sentido que Lacan (1992, p. 86) estabelece um paralelo entre o trabalho do psicanalista e aquele de um etnógrafo,

Quando digo que não é pela psicanálise que se pode entrar numa pesquisa etnográfica, todos os etnógrafos estariam certamente de acordo. Talvez tivessem menos se eu lhes dissesse que, para ter uma pequena ideia da revitalização do discurso da ciência, quer dizer, para ter quem sabe uma pequena chance de fazer uma boa pesquisa etnográfica, seria preciso, repito, não proceder pela psicanálise, mas talvez, se isso existir, ser um psicanalista.

Lacan (1992) posiciona portanto o discurso do analista numa posição um tanto diferenciada, deixa-nos entender que os discursos, da histérica, do universitário e do mestre,  estariam, de algum modo, passíveis de serem indagados pela estrutura própria ao discurso do analista, ou seja, que  cada momento de crise e de giro na roda do destino/história se constitui numa oportunidade de convocar o sujeito, a nos contar de novo e como um novo a sua versão dos fatos, a sua história, e assim, se situar, numa linhagem, num contexto cultural e histórico, como sujeito do desejo.

Marcos Antônio Ribeiro Moraes é psicanalista, membro da Appoa, professor da PUC–Goiás, especialista em saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia.

Referências

FREUD, S. O mal-estar na civilização, 1930.in: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. V. 19.

FREUD, S. Análise finita e infinita, 1937.In: Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

Lacan, J. (1992). O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise, 1969-1970. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.