… além da circulação universal das mercadorias. Até capitalistas empedernidos tomaram um susto com a crise

Halley Margon

Especial para o Jornal Opção

Segunda-feira, 7 de abril, me liga um amigo que desde o ano passado está morando numa pequena cidade próximo a Arezzo no Norte da Itália — onde residia a bela Juliette Binoche no filme “Cópia Certificada”, de Abas Kiarostami. Ele está ali para concluir um doutorado que trata da conservação da memória histórica contida nos afrescos dos séculos XIII e XIV — espero não estar fornecendo uma descrição muito afastada da verdade do que é o seu trabalho, e se estiver, ele certamente saberá me perdoar, até porque não é este o ponto. A questão aqui é o que ele me disse na nossa breve conversação. E o que me disse foi que não estava conseguindo ler mais nada, escrever mais nada, ver mais nada. De repente e sentia-se imobilizado, incapaz de prosseguir. Porque de repente tinha se dado conta da dimensão do que estava se passando agora mesmo à nossa volta e no mundo inteiro. Isso o havia paralisado.

Qual o sentido de seguir trabalhando? O significado de anos de pesquisa, o acúmulo de dados, a reconstrução do passado simplesmente tinha desmoronado sob o peso do presente. Era atordoante.

Mais de uma vez chamamos de catástrofes mundiais eventos que embora tenham tido repercussão no conjunto do planeta, como as duas grandes guerras do século XX, foram fundamentalmente europeus. Então, concordamos que pelo menos num aspecto o que está ocorrendo é inédito porque pela primeira vez na história estamos experimentando todos e num só tempo, em praticamente cada canto da Terra, um único drama, uma ameaça e um desafio literalmente mundial. E agora a pergunta é: será que essa experiência nos servirá para alguma coisa?

É verdade que nossa relação com a forma mercadoria também nos força a uma experiência em comum, à qual cada um de nós sem exceção estamos submetidos, em casa, no trabalho, nas ruas, durante o ócio ou durante os sonhos, e à qual nossa consciência e até nosso desejo foi escravizado. Nós próprios nos tornamos mercadorias quando, por exemplo, como força de trabalho vamos ao mercado para vendê-la pelo melhor preço possível. Mas à essa experiência falta algo: a consciência dela como experiência social (e existencial) simplesmente nos escapa no momento mesmo em que a realizamos. Porque naquele preciso momento apenas consumimos. E quando isso acontece não há como possamos partilhá-la. O ato do consumo, nossa mais íntima relação com a mercadoria, é um ato supostamente banal, algo tão incorporado quanto respirar. E, de fato, muitos de nós, se não estamos consumindo é como se nos faltasse o ar.

Da consciência da pandemia, ao contrário, não há como fugir. Ela se evidencia dia a dia na repentina ruptura da rotina das nossas vidas.

As cidades estão vazias e paradas. Milhões, dezenas de milhões de pessoas perderam o trabalho da noite para o dia, sem que nenhuma crise econômica prévia preparasse minimamente os ânimos – porque, sim, os trabalhadores sabem por experiência histórica que o preço das crises geradas nos gabinetes dos tecnocratas e banqueiros quem paga são sempre eles, os que dependem do trabalho para sobreviver. Essa dispensa massiva de gente, no entanto, veio como um raio em céu azul, literalmente sem qualquer aviso prévio. E estamos todos meio que voluntariamente presos em casa, impotentes, sem poder reagir, sem poder protestar seja contra o que for. Tudo o que nos resta é esperar. Esperar sem saber muito bem o que virá em seguida.

Então, não havia o que eu pudesse retrucar quando meu amigo disse que todo o trabalho dele parecia ter se evaporado, perdido o sentido como se jamais tivesse de fato significado alguma coisa. Um brilhante, paciente e minucioso estudo de um período crucial para a arte e o conhecimento do ocidente (pelo menos) – quando, de agora em diante, ele poderia dizer que isso importava?

Do outro lado da linha eu não soube o que contestar. Assim, nos mantivemos mudos. Porque não havia o que dizer. Entretanto, nós os humanos mesmo quando não há mais o que dizer, seguimos falando. Trocando amenidades, quaisquer que nos venham na tentativa de nos mantermos eretos. Foi o que fizemos. Só no dia seguinte, buscando na pequena biblioteca que trouxe para Barcelona (a maioria dos meus livros continua aí e até agora não me organizei o suficiente para poder trazê-los todos), encontrei o texto que vagamente me havia ocorrido no meio daquele silêncio horroroso. Era um texto do Ítalo Calvino onde ele cita o romeno Emir Cioran, que conta a seguinte história:

“Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. ‘Para que lhe servirá?’, perguntam-lhe. ‘Pra aprender essa ária antes de morrer.’”

De modo que, a indicação de leitura de hoje é o livro do Calvino onde se encontra esse texto e que no Brasil foi publicado com o título de Por que Ler os Clássicos (Cia das Letras).

Redimensionando o tamanho da crise

Acabo ler a manchete da edição digital do “El País”, principal jornal da Espanha e um dos mais respeitados do mundo: “Líderes de todo o mundo pedem uma resposta comum contra o vírus: carta ao G20”. Abaixo, a publicação integral de um manifesto assinado por figurões de 70 países, de economistas ganhadores do Nobel a chefes de Estado, presidentes e ex-presidentes, primeiro ministros etc.

Basicamente, o que propõem é uma ação solidária, coordenada e imediata em escala global. Em outras palavras, estão propondo uma interrupção provisória das regras do capitalismo – efetiva cooperação internacional, solidariedade ao invés de concorrência entre países e entre setores da economia, emprego de todos os recursos financeiros disponíveis para o atendimento de necessidades coletivas e dos mais desprotegidos. Além de financiamentos em escalas inéditas para bancar, por exemplo, uma “drástica revisão da saúde pública mundial e a transformação – com os recursos necessários – da arquitetura sanitária e financeira do mundo inteiro”. Não é pouca coisa e dá a exata dimensão do tamanho do susto que tomou conta de todos quanto tenham um mínimo de juízo.

Esqueçam os valores aos quais estamos acostumados, mesmo quando se trata de Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e que tais. As cifras exigidas por essa gente de respeito para a execução dessa “ação imediata coordenada a nível internacional,  nos próximos dias”, enfatizam, vão entrar para a história: 8 bilhões de dólares ‘para cobrir vazios mais urgentes”, 35 bilhões de dólares para os “países com sistemas de saúde mais débeis e populações especialmente vulneráveis”.

Quanto ao FMI, que mobilize “todos os seus recursos”, nos quais se inclui uma “capacidade de empréstimo de 1,2 trilhões de dólares e a possibilidade de alocar imediatamente 600 bilhões”, além de “uma injeção adicional de US $ 500 bilhões a US $ 1 trilhão na forma de Direitos de Saque Especiais (DSE)”.

O Banco Mundial, por sua vez, “pode aumentar a ajuda… para os países mais pobres para aproximadamente US $ 25 bilhões ao ano e aumentar a ajuda do BIRD para países de renda média de US $ 25 para US $ 35 bilhões… Mas é provável que, como aconteceu em 2009, quando os gastos do BIRD passaram de US $ 16 bilhões para US $ 46 bilhões, será necessário expandir ainda mais os recursos disponíveis…”.

A “comunidade internacional” (credores, agiotas e que tais), deve “perdoar os pagamentos de dívidas dos países à AID este ano, incluindo US $ 44 bilhões devidos pela África, e considerar o alívio futuro da dívida”. Mas isso não será suficiente. Serão necessários também “pelo menos 150 bilhões de dólares para criar redes de proteção sanitária e social e outras ajudas urgentes” para os países africanos e outros “países em desenvolvimento”.

E a liberação de todos “esses recursos deve ser imediata”, concluem.

Gente desse porte (o manifesto e a lista dos assinantes pode ser acessada aqui https://elpais.com/elpais/2020/04/07/opinion/1586254452_353504.html) não solta ou recomenda a soltura de dinheiro nessa escala e para tais fins (exceto com infindáveis e intoleráveis contrapartidas) a não ser que a coisa esteja realmente a ponto de colocar em risco a continuidade, ainda que momentânea, dos seus próprios negócios.