A história de como o escritor espanhol Javier Marías se tornou rei da ilha de Redonda
23 setembro 2022 às 21h30
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No livro “As Entrevistas da Paris Review” (Companhia das Letras, 459 páginas, tradução de Christian Schwartz e Sérgio Alcides), há uma entrevista (de 2006), com 41 páginas, que esclarece a história de como o escritor espanhol Javier Marías, recém-falecido, aos 71 anos, se tornou rei da ilha de Redonda, no Caribe. Era conhecido como rei Xavier I (ainda não se sabe quem será o seu substituto. Talvez, mesmo morto, o escritor fique como o eterno rei da ilha). A entrevista do escritor espanhol é excelente e uma síntese foi publicada pelo Jornal Opção no domingo, 18.
A história que se contará a seguir é baseada na entrevista de Javier Marías, o ex-rei de Redonda.
Magnata das navegações, Matthew Dowdy Shiel, na celebração de 15 anos de seu filho Matthew Phipps Shiel (1865-1947), em 1880, “se declarou proprietário da ilha inabitada de Redonda, perto de Montserrat, não muito distante de Antígua”. Com o apoio de um pastor metodista, declarou M. P. Shiel rei da ilha.
De acordo com Javier Marías, Redonda “é um lugar bastante rochoso, de acesso difícil” e “foi usado como como porto por contrabandistas”. Em seguida à nomeação de Shiel, os britânicos “decidiram anexá-la porque tinham descoberto fosfato de alumínio” no local.
Shiel brigou com os ingleses por causa da ilha, mas perdeu a batalha. Mas o escritor e dono de uma frota de navios pôde continuar usando o título simbólico de rei de Redonda.
Na velhice, M. P. Shiel passou a morar na Inglaterra e recebeu o apoio do escritor John Gawsworth (1912-1970). Com a morte de Shiel, aos 81 anos, em 1947, Gawsworth “ficou com os direitos sobre sua obra e herdou seus bens”.
Ao se tornar rei de Redonda, Gawsworth nomeou uma aristocracia intelectual, com duques, como Lawrence Durrell, Henry Miller e Dylan Thomas, e duquesas.
O escritor Gawsworth se relacionava com, entre outros, Thomas Hardy e T. E. Lawrence. Porém, como era alcoólatra, acabou ficando paupérrimo. “Tinha muitas dívidas de aluguel e nos bares que frequentava e começou a vender títulos” às “pessoas. Chegou a colocar um anúncio no ‘Times’ oferecendo o título de rei de Redonda”, relata Javier Marías.
Um dos que tentaram comprar o título de rei de Redonda, o dinamarquês Carl Werner Skogholm, escreveu: “Sua Alteza Real, rei John Gawsworth de Redonda, (…) tenho duas filhas. Meninas podem herdar o trono? Seria maravilhoso me tornar rei de repente”.
Precisando de dinheiro, Gawsworth vendeu o título “para mais de um comprador”. Alguns deles ficaram irritados com Javier Marías, que era apresentado ou se apresentava como rei de Redonda, tendo chegado a lançar um selo editorial, o Reino de Redonda.
No “estranho” (e divertido) romance “Negro Dorso do Tempo” (Martins Fontes, 339 páginas, tradução de Eduardo Brandão) — com a ficção inventando a realidade e vice-versa —, à página 14, Javier Marías assinala: o “desventurado, calamitoso e jovial escritor John Gawsworth, o incrível rei de Redonda que nunca viu seu reino mas o vendeu várias vezes e se fez chamar Juan I, e cujo verdadeiro nome também era outro, Terence Ian Fytton Armstrong, de quem incluí e descrevi no romance duas fotografias”.
Um dos supostos herdeiros do trono de Redonda disse: “Foi tão difícil desbancar os espanhóis e agora você entrega tudo de volta para eles!”. Javier Marías disse à entrevistadora que ria ao saber desse tipo de história. “Nunca afirmei que sou o rei de Redonda ou assinei com outro nome que não o meu, Javier Marías. Nunca fui monarquista. Estou mais para republicano”, afirmou o autor de “Negro Dorso do Tempo”.
Aparentemente irônica, aderindo ao espírito jocoso de Javier Marías, a entrevistadora Sarah Fay pergunta: “Mas como o sr. se tornou esse rei relutante?” O autor de “Todas as Almas” (Martins Fontes, 232 páginas, tradução dez Monica Stahel. Por sinal, recomendo que o leitor de “Negro Dorso do Tempo” leia este romance; são independentes e, digamos, complementares) “vocifera”: “Esses ‘impostores’, como são chamados, dizem que comprei o título num leilão, o que não é verdade. Em 1997, depois que incluí um dos textos de Gawsworth numa antologia e contei sua própria história em ‘Todas as Almas’, Jon Wynne-Tyson, que assumira o título de rei no lugar dele, me escreveu dizendo que queria abdicar porque os impostores o incomodavam havia anos. (…) Como eu conhecia bem a história e tinha tornado Redonda mais famosa do que jamais fora, ele perguntou quem eu achava que seria um bom sucessor. Mencionou Seamus Heaney. (…) Eu disse: ‘Sim, penso que o sucessor devera ser um escritor ‘de verdade’ — o trono deveria ter um herdeiro nas letras e não um de sangue’”.
Depois de uma conversa enviesada, Jon Wynne-Tyson disse que Javier Marías seria “uma boa escolha”. “Respondi que, se não aceitasse que algo tão romanesco se metesse na minha vida, não deveria ser considerado um romancista. Então aceitei.”
O autor de “Amanhã, na Batalha, Pensa em Mim” (Martins Fontes, 377 páginas, tradução de Eduardo Brandão) afirma que ser rei de Redonda “é apenas um título. Antígua retomou a posse, a ilha pertence a Antígua, e não vou me lançar em disputas dinásticas sobre uma coisa que é mais ficcional do que real”. Quanto aos críticos, os questionadores de seu reinado, Javier Marías afirma que decidiu “nunca responder a ninguém. Declarei, com ar solenemente galhofeiro, que essa é a única atitude digna de um rei: não responder. O que fariam o rei da Inglaterra ou o rei da Espanha? Não responderiam”.
A ilha não seria “completamente inventada”, considerando que Javier Marías “mistura muito ficção e verdade em seus romances”? É o que quer saber Sarah Fay. “Mas existem mapa. Ela está lá”, sublinha.
Sarah Fay pergunta se Javier Marías viu a ilha. “Não, de perto, não. Jon Wynne-Tyson viu. Mas visitar o lugar, na minha opinião, também não é muito importante”, afirma o autor de “Assim Começa o Mal” (Companhia das Letras, 515 páginas, tradução de Eduardo Brandão).
Como rei de Redonda, Javier Marías concedeu títulos a escritores e artistas, como Pedro Almodóvar (duque de Trémula), John Ashbery (duque de Convexo), Francis Ford Coppola (duque de Megalópolis). O prosador frisa que os membros da aristocracia de Redonda não têm nenhuma obrigação, “nem mesmo a da lealdade”.
Javier Marías concedia um prêmio em nome da ilha. “O problema é que, quando escrevo aos vencedores, se não sabem quem sou, o que ajudaria, tenho de explicar toda a lenda de Redonda e parece coisa de maluco. Preciso lhe pedir que não levem a sério a história de que sou rei e tudo mais, para que não pensem que sou louco ou coisa parecida. (…) Este ano [2006] o vencedor é Ray Bradbury. Vamos ver se entende a piada porque, se não entender, terei de procurar Jean-Luc Godard — que ficou em segundo lugar — e explicar tudo de novo. (…) Bradbury precisará decidir que título gostaria de receber como duque de Redonda. Sugeri alguns: duque de Diente de León ou duque de Carnaval Oscuro.”
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Javier Márias: romancista, contista, crítico literário e tradutor
Javier Marías morreu no domingo, 11, aos 70 anos. María José Solano, num texto publicado no jornal “Abc”, com o título de “Muere Javier Marías, el gran novelista español de último médio siglo”, começa sua homenagem com uma citação do escritor: “Ninguém conhece a ordem da morte”.
Muito ligado ao pai, o filósofo Julián Marías, Javier Marías escreveu a trilogia “Seu Rosto Amanhã” — composta de “Febre e Lança” (406 páginas), “Dança e Sonho” (359 páginas) e “Veneno, Sombra e Adeus” (611 páginas), traduzidos por Eduardo Brandão, com mestria, e publicados pela Companhia das Letras — para homenageá-lo e, claro, fazer grande literatura (o mestre espanhol força a realidade a dizer mais do que aparentemente diz, ou seja, coloca-a a serviço da arte literária, quer dizer, da ficção; ao fim e ao cabo, quem ganha, além da literatura, é a própria realidade, que se torna mais vigorosa. Digamos assim: ao criar uma ficção para a realidade, Javier Marias a [r]estabelece com mais energia). Julián Marías, perseguido pelo governo fascista de Francisco Franco, teve de se mudar para os Estados Unidos, onde deu aulas em algumas universidades.
“Seu Rosto Amanhã” era considerado por Javier Marías como seu “melhor romance”, “o mais complexo e ambicioso”. “Traduzida para 30 idiomas, a trilogia — publicada entre 2002 e 2007 — vendeu cerca de meio milhão de exemplares em todo o mundo”, informa María José Solano.
Nos Estados Unidos, Julián Marías residiu na casa do poeta Jorge Guillén, em Massachusetts. No andar superior morava o escritor Vladimir Nabokov. Na época, Javier Marías tinha 1 ano de idade. No livro “Desde Que Te Vi Morrer”, de 1999, o escritor homenageia o colega russo. Trata de um “belo álbum”, assinala María José Solano.
Javier Márias escrevia desde os 11 anos… “para, segundo suas palavras, ‘seguir lendo o que gosto’”. Quando menino, lia Richmal Crompton, Enid Blyton, Alexandre Dumas, Emilio Salgari, Corbert, Paul Féval, Julio Verne e, “por suposto”, os quadrinhos de Tintín. “Eu queria ser Tintín e Javier queria escrevê-lo”, disse o escritor Arturo Pérez-Reverte. Os dois eram amigos.
Aos 15 anos, revelando precocidade literária, Javier Márias escreveu o romance “La Víspera”. Decidiu não publicá-lo. Espera-se que nenhum parente oportunista e ganancioso o publique. Se o escritor não quis publicá-lo, por certo, não valia grande coisa.
Com 19 anos, morando em Paris, publica o romance “Os Domínios do Lobo”, em 1971.
Em Paris, de acordo com María José Solano, Javier Marías escrevia de manhã, ia ao cinema à tarde e, à noite, “cantava, acompanhado de um violão, nos Champs Élysées em troca de algumas moedas para seu sustento, ‘basicamente pão com mostarda’”.
O projeto de ser escritor foi decidido na juventude. Completa seus estudos em Filologia Inglesa e começa a escrever romances — como “Travessia do Horizonte” (1972) e “O Monarca do Tempo” — e assina artigos na imprensa da Espanha.
Convidado, Javier Marías leciona em Oxford, Londres, Boston e Veneza. Em 1986 publica “O Homem Sentimental” (Companhia das Letras, 158 páginas, tradução de Eduardo Brandão) e, em 1989, “Todas as Almas”. De acordo com María José Solano, “é uma falsa novela autobiográfica” que “lhe permite construir um relato autobiográfico verdadeiro, porém sem parecê-lo, num ambiente inquietante e, às vezes, cômico”. Vale a pena ler, em seguida, “Negro Dorso do Tempo”, no qual “Todas as Almas” é citado fartamente.
María José Solano sublinha que a consolidação do grande romancista ocorre na década de 1990. Com o romance “Coração Tão Branco”, de 1992, Javier Marías “obtém um reconhecimento unânime por parte da crítica nacional e internacional, que o firma como um dos melhores escritores de língua espanhola. Publica, com enorme êxito, ‘Amanhã, na Batalha, Pensa em Mim”, em 1994”. “Negra Espalda do Tempo”, tida como uma “obra de referência”, sai em 1998.
Ao mesmo tempo em que escreve sua prosa singular, Javier Marías traduz para o espanhol autores como Vladimir Nabokov e William Faulkner, dois de seus aliados literários. Publicou também contos, relatos e artigos literários. Autointitulado rei de Redonda (leia acima) — Xavier I —, o escritor criou uma editora de alta qualidade, Reino de Redonda. María José Solano se tornou “cidadã honorária” do Reino de Redonda.
Javier Márias, refinando sua arte literária, publicou também “Os Enamoramentos” (Companhia das Letras, 343 páginas, tradução de Eduardo Brandão), em 2011, “Berta Isla” (Companhia das Letras, 543 páginas, tradução de Eduardo Brandão), em 2017, e ‘Tomás Nevinson” (inédito no Brasil, há edição portuguesa da Alfaguara. “‘Tomás Nevinson’ será talvez o melhor romance que Javier Marías já publicou”, escreveu José-Carlos Mainer no jornal “El País”), de 2021.
Seguindo a veia cômica de Javier Marías, que misturava e conectava realidade e ficção de maneira extraordinária, María José Solano imagina uma visita ao escritor no hospital. Ao sair do coma, e ao reconhecer os rostos dos que o rodeavam, perguntou por que seus amigos não o visitaram.
Então, os amigos disseram: “Estamos aqui, Javier. Somos nosotros”. O escritor respondeu: “No, nos los sois. ¿Donde están Baroja, Cervantes, Dumas, Sterne, Conrad, Melville, Stevenson? ¿Donde se há metido esse truhan [vampiro] de William [presumo que seja Shakespeare, umas das paixões do prosador espanhol]; ese grandíssimo bardo sinvergüenza? [sem-vergonha] Decidle que, si no acude junto a mi lecho inmediatamente, no volveré a lucir jamás su rostro en mi solapa” [lapela, parte do casaco, paletó].
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Fernando Savater diz que Javier Marías era um “chico maravilhoso”
O filósofo e escritor Fernando Savater publicou na segunda-feira, 12 de setembro, um breve comentário sobre Javier Marías. Começa assim: “Sempre teve entre os amigos a fama de jovem. Era o ‘jovem Marías’”. Assim o chamava Juan Benet, grande amigo do escritor. Os amigos o consideravam uma espécie de “menino prodígio”.
Fernando Savater postula que o romance “Os Domínios do Lobo”, escrito aos 19 anos, é dotado de uma “narrativa madura e complexa”. O próprio escritor, embora não tivesse vergonha de seu rebento literário, o via como um “exercício”. E, de fato, ele está certo.
Javier Marías, muito jovem, “havia lido tudo e traduzia, como ninguém, os versos de Stevenson ou o ‘Tristram Shandy’ [de Laurence Sterne]. Porém conservava, sobre alguns assuntos, uma ingenuidade virginal, adolescente”.
O escritor “era o mais cálido dos amigos e o mais furioso dos amantes, ainda que aqueles que não o conheciam tenham criado a fama de que era frio e altivo” (por certo, arrogante).
“Compartilhava comigo afeições a chaladuras [porcarias, bobagens], desde contos de fantasmas — o único gênero verdadeiramente realista, por certo — até o culto a Sherlock Holmes. De vez em quando me mandava um livro difícil de encontrar e do qual, dizia, eu iria gostar: ‘Como não conhece Manly Wade Wellman? [escritor americano, 1903-1986]. Vai te encantar’. E me presenteava com uma edição não-encontrável do primeiro romance de ‘John The Balladeer’ [personagem de Manly]”, escreve Savater.
O humor de Javier Marías, “feito de subentendidos, era, junto à sua afeição pela aventura, o que havia de mais inglês em seu caráter”, assinala Savater.
“Morrer tu, tão jovem. Impossível! Mas, como acredito que disse Heidegger, a morte é a possibilidade da impossibilidade. Que vá bem, menino maravilhoso”, conclui seu artigo Fernando Savater.